Uma olhada rápida em “O Baile dos Bombeiros” pode não ser lá muito convidativa. Sem considerar que Milos Forman é o diretor, resta apenas uma trama que poderia muito bem ser um episódio de seriado comédia de tão simples. Não surpreendentemente, a duração deste longa-metragem — 73 minutos — está bem próxima da soma de três episódios de vinte e poucos minutos. Todavia, é mais do que o bastante para contar a história de um baile de bombeiros que dá errado em todos os aspectos possíveis. Só isso? Relativamente. Um corpo de bombeiros planeja um grande evento em homenagem o ex-chefe do departamento, recentemente diagnosticado com câncer, para dar-lhe uma pequena demonstração de gratidão por seu serviço. As festividades incluem um concurso de beleza para as garotas, uma rifa com prêmios de todos os tipos e uma premiação ao próprio velhinho. De qualquer forma, tudo dá errado.
Francamente, “O Baile dos Bombeiros” é um daqueles filmes difíceis de se falar sobre porque tudo é tão bem amarrado, pontual, objetivo, orgânico e breve que dificulta a vida. Mais ou menos como se a obra fosse transparente e não precisasse de alguém falando dela para revelar algum significado oculto ou perdido. Até mesmo as histórias acerca de seu desenvolvimento e das intenções do diretor foram reveladas pela era da informação, então já não é novidade que Milos Forman se inspirou num tragicômico baile de bombeiros de verdade. Também não é novo o fato que o filme foi banido para sempre na antiga Tchecoslováquia e, embora feito com inspiração em um evento engraçado, acabou ganhando fama de ser uma crítica a qualquer tipo de instituição que tem um discurso muito diferente da prática. As possibilidades vão desde um amplo regime totalitário até o íntimo círculo familiar desde que estas incluam uma cegueira da própria incompetência.
Tudo na vida é um processo composto por passos, etapas e estágios maiores que frequentemente se sucedem sem evidenciar os limites entre cada ciclo, dando a impressão de que tudo é uma grande coisa só. O indivíduo percebe todas estas fases como uma vida inteira sem parar para reparar nos pontos de virada e, muito menos, nos atos que comete em cada uma das fases da vida. Em dado momento, ele pode sentir pela primeira vez o mundo discordar de algo que ele levava como verdade incontestável, desencadeando uma onda de arrogância compensatória de tudo aquilo que discorda de sua visão de si, uma forma de se enganar pra manter a ilusão viva Tudo bem, aí já é ir um pouco longe demais na analogia. O ponto é que “O Baile dos Bombeiros” funciona tão bem até hoje — e em seu tempo levantando tanta controvérsia — por tratar de uma questão muito humana: estar cego às próprias qualidades e defeitos, à eficiência de cada ato, à impressão causada nos outros. Pode parecer que nós, como raça, somos muito ruins no uso da percepção, mas a alternativa é muito pior. Seria impossível manter um tipo de estresse tão constante quanto o esforço de se auto-analisar.
O filme funciona porque a carapuça serve em tantas cabeças de tamanhos diferentes. A mesma lógica ampla é certeira em sua crítica não por ser generalista, mas por tratar de uma questão verdadeira. Basta olhar para o funcionamento fluído da passagem de tempo e perceber que o modo automático às vezes é automático demais; a pessoa segue tanto seu próprio ritmo que esquece do valor da auto-crítica. E precisa mesmo ser ela mesma ao invés de qualquer outra pessoa neste papel de crítico? Sem dúvida. Apesar dele normalmente ser assumido por pais, amigos, amores, parentes, nenhum destes marca presença em “O Baile dos Bombeiros” a fim de que tudo funcione bem como funciona.
Claro que não é uma regra universal para outras histórias, nas quais a oposição de valores pode ser explicitada por outros elementos. Acontece que a escolha deste longa é a de deixar um espaço vago para que o espectador perceba a farsa por conta própria. Ele pode notar sem o intermédio de ninguém como um departamento inteiro, não só uma pessoa, é incompetente na tarefa de perceber que está fazendo feio. A consciência acha que está completamente livre de estigmas e máculas, mas parte mais profundas da psique sabem muito bem que a bagunça só foi colocada dentro das gavetas. Não há organização real, apenas uma aparência infiel à realidade. O espectador acaba agindo como um tipo de fiscal da natureza humana.
Falando dessa forma até parece que “O Baile dos Bombeiros” é um filme seríssimo recheado de críticas pungentes à natureza humana e sua tendência de cobrir os próprios rastros. A verdade é que este é o exemplo mais próximo de uma versão cult de “Loucademia de Polícia” que há por aí, imagino. É a mesma palhaçada, os mesmo personagens ridiculamente trapalhões se envolvendo numa grande bagunça, a tal galerinha da pesada e suas bobagens dirigidas por alguém cujos filmes somariam dezenas de prêmios no futuro. Sai o diretor comercial desconhecido e entra Milos Forman orquestrando a simplicidade de sua trama para que todas estas interpretações sejam embaladas em comédia de primeira, do tipo que não precisa fazer piadas o tempo todo ou usar exposição para colocar o humor em palavras. As situações são engraçadas naturalmente e sem esforço.
Isso não é o mesmo que dizer que tudo funciona por conta de sorte, divina providência ou acaso, mas por uma estrutura que permite a existência dos absurdos, em primeiro lugar, e depois só flui como se fosse perfeitamente normal continuar como se não houvesse nada errado. É quase a mesma coisa que planejar um casamento, a noiva não aparecer e casar sozinho mesmo assim. Não faz sentido e nem deve. Os mundos de filmes de comédia foram feitos para subverter as regras normais e seguirem suas próprias — como os personagens serem doidos a ponto de concordarem em seguir com a cerimônia, seguindo o exemplo. Tudo isso é apenas uma parte do sucesso que “O Baile dos Bombeiros” alcança, já que cada sequência nova nunca destoa da anterior e consegue manter o sorriso uma constante da experiência.