Eis o que acontece quando um filme cult é refeito. O termo remake, incomparavelmente mais comum no mercado comercial, dá as caras num filme de Werner Herzog, que decidiu revisitar um dos maiores clássicos do Cinema Mudo: “Nosferatu, eine symphonie des grauens“. Mais curioso ainda não é o fato de um remake existir fora do circuito comercial, e sim de ambos serem produções estrangeiras. Um mestre alemão revisitando e homenageando outro mais de 50 anos depois com novas ferramentas e uma linguagem mais complexa a seu dispor. “Nosferatu: Phantom der Nacht” certamente mostra ser um avanço diante do clássico de 1922.
Assim como seu predecessor, a história começa quando Jonathan Harker (Bruno Ganz), um vendedor de imóveis na cidade de Wismar, é enviado para apresentar algumas propostas para um possível comprador. Harker deixa a esposa para trás em Wismar quando parte em uma jornada árdua até a Transilvânia, onde o Conde Drácula (Klaus Kinski) reside num castelo com fama de mal-assombrado pelos camponeses da região. Chegando lá, o estranho conde não demora para mostrar suas más intenções quando viaja para a cidade de Jonathan para deixar devastação em seu caminho. Apenas os esforços de uma dama de coração puro podem impedir essa proliferação de morte e doença.
Não sou dos maiores fãs do “Nosferatu” original. Francamente, acredito que sua importância e popularidade obscureçam de longe sua qualidade propriamente dita, já que os 96 anos desde seu lançamento não foram muito gentis. Meu maior medo com “Nosferatu: Phantom der Nacht” era ver algum tipo de saudosismo exacerbado que pegasse a obra de F.W. Murnau e apenas transferisse para uma mídia mais modernizada — ainda que a mesma —como aconteceu com o “Psycho” de “Gus van Sant”. O problema nesse caso, em especial, é que fazer isso traria de volta justamente os problemas que praguejaram a versão de 1922. Felizmente, a transição não é literal como esperado, embora resgate alguns problemas originais, e inclusive traz algumas novidades que sem dúvida podem ser consideradas melhorias. Talvez não seja o remake ideal, mas já é um esforço notável.
Considerando que se trata de um remake e da adaptação de uma das histórias mais conhecidas de todos os tempos, serei mais liberal com o que acontece no enredo. Com exceção de alguns detalhes que tirariam parte da graça, o resto da história é praticamente o que foi descrito na premissa. Similaridades de enredo à parte, o simples fato deste não ser um filme mudo já faz bastante diferença em termos de narrativa. Todos os personagens possuem personalidades e conflitos mais palpáveis do que antes, o que possibilita que a história como um todo se beneficie de indivíduos mais tridimensionais e de características pessoais evidentes. Antes, não era possível dizer que tipo de pessoas eram Jonathan ou Lucy — Hutter e Ellen no original — para além dos papéis simples de apaixonados e vítimas de uma entidade maligna. “Nosferatu: Phantom der Nacht”, por sua vez, expande suas participações na trama. Eles mantêm o papel de casal apaixonado e o executam mais verdadeiramente, mas não o fazem de graça: esta maior atenção tem consequências diretas sobre a resolução do enredo.
Quando o Conde entra na vida deles, sua influência vai além de um mal que, por azar, aflige a vida do casal perfeito. Uma das expansões de “Nosferatu: Phantom der Nacht” é dar ao próprio monstro, antes sem um propósito além de ser vilão, personalidade e uma posição de criatura amaldiçoada e profana sem perspectiva de salvação. Neste ponto especificamente, Klaus Kinski faz a diferença porque ele pode falar, ser ouvido e melhor representado visualmente com a maior contagem de quadros por segundo. Para um monstro visualmente idêntico àquele interpretado por Max Schreck, foi uma agradável surpresa ver traços sutis de emoção e um resquício de humanidade por trás da feição horrenda do monstro, que não consegue evitar a atração pela pessoa que tem justamente aquilo que falta nele. Por isso faz toda a diferença que Lucy demonstre ser alguém de amor puro e honesto, esforçando-se para manifestar seus sentimentos para mais tarde colocá-los à prova na hora de desespero.
Por mais que essa expansão de caráter seja positiva, há um porém: se Drácula é uma figura que tenta conquistar a empatia da audiência por conta de sua condição eterna, por que diabos ele pratica o mal conscientemente? Tudo bem ele ter desejos diretamente ligados à Lucy e o que ela representa; o que significa, então, transportar caixões de terra contaminados com ratos carregando a peste negra? A criatura tem necessidades fisiológicas bem definidas para algumas de suas atividades, mas nunca uma justificativa moral para espalhar uma doença em uma cidade inteira. Seria inveja de algo que os humanos normais possuem e ele não? Seria um impulso incontrolável de praticar maldades? “Nosferatu: Phantom der Nacht” nunca explica. Simplesmente traz uma novidade interessante sem pensar em adaptar partes da trama original à proposta diferenciada.
Mas não foi tanto nesta discordância em que pensei quando considerei os pontos mais fracos de “Nosferatu: Phantom der Nacht”. A maior fonte de incômodo foi justamente minha maior preocupação antes de assistir: revisitar as coisas como elas eram. Sendo justo, estes momentos fracos nem de longe acontecem tão frequentemente quanto no primeiro, pois só a atuação de Klaus Kinski já faz muito para humanizar um personagem que se portava tão bizarramente que nunca poderia se passar por pessoa normal. A despeito da aparência idêntica, ele parece ser mais normal; uma pessoa muito estranha, mas aceitável por um triz. Se por um lado o Conde parece um pouquinho mais humano, ele continua péssimo como monstro por conta de momentos que tentam emular o que foi feito em 1922, os quais continuam totalmente eficientes em sua tarefa de fazê-lo parecer ridículo. Não há nada de assustador, imponente ou faustoso sobre uma criatura que anda lento e torto como se tivesse algum tipo de paralisia; nem há nada de interessante numa cena que mostra alguém, ainda assim, se tornando vítima do vampiro aleijado.
Só não posso reclamar de toda e qualquer coisa relacionada à parte visual da obra. A jornada de Jonathan, da saída da cidade até o trajeto por florestas e montanhas, é mais cativante pelo óbvio benefício da fotografia colorida, um grande salto dos fotogramas em preto e branco tingidos de amarelo ou azul. Não só isso, é claro, pois há todo um esforço valioso na representação de algumas idéias antigas. Imagens antes inesquecíveis pelo preto e branco de altíssimo contraste agora surgem com tons coloridos junto ao preto das sombras e da penumbra. Outras, completamente novas, são mais expansões do que veio antes, como ratos praguejados empilhando-se no barco, nas ruas e em todo o lugar. Quem dera todo o resto de “Nosferatu: Phantom der Nacht” fosse feito destes aprimoramentos.