De todas as idéias para um seriado, “Feud” escolheu uma bem curiosa. Exemplos diversos passam pela cabeça quando se pensa no assunto: o cotidiano de um homem no topo da cadeia alimentar de uma agência de publicidade nos revolucionários Anos 60; a vida pouco elegante de um mafioso na igualmente pouco elegante Nova Jersey; dois pontos de vista opostos, policiais e criminosos, colocados frente a frente no contexto da perigosa Baltimore; e por aí vai. Estes são apenas alguns dos melhores que existem por aí. Sendo assim, mal precisa dizer que qualquer uma destas opções oferece muito mais conteúdo substancial do que um programa de fofoca da televisão aberta. E, no entanto, a fundação de “Feud” é justamente o cochicho a respeito de celebridades; com o diferencial dos eventos representados terem acontecido há quase 50 anos e de não ser de fofoca barata.
No começo dos Anos 60, as carreiras de Joan Crawford (Jessica Lange) e Bette Davis (Susan Sarandon) não passam de um resquício desbotado do sucesso das décadas de 30 e 40. Quanto mais escassos os papéis, mais parece que a infame aposentadoria se aproxima. Enquanto isso, Robert Aldrich (Alfred Molina) enfrenta suas próprias dificuldades atrás das câmeras pelos seus filmes estarem em declínio junto com suas perspectivas de futuro. Então surge uma oportunidade interessante desta combinação de fracassos: Aldrich planeja juntar as duas estrelas do passado, também famosas por alfinetarem-se ao longo dos anos, em uma mesma produção. Dois egos gigantescos em um lugar só e o pesadelo de um cineasta sendo o último recurso de sua carreira.
O embate histórico entre duas mulheres dificílimas.
Dentre os tipos de leitura, fofoca não emplaca como um dos mais cultuados e respeitados, sendo tratado como um interesse frívolo que agrega de pouco a nada para o leitor. Independentemente do sujeito da fofoca, gente importante ou o vizinho do andar de cima, é difícil achar alguém que realmente valoriza este tipo de coisa como algo relevante. No entanto, não dá para negar que é uma fonte ocasionalmente interessante de entretenimento descompromissado. Uma coisa é frequentar sites e comprar revistas de fofoca por conta de um interesse genuíno, outra é esbarrar numa notícia amplamente divulgada e descobrir alguma curiosidade bizarra da vida íntima de alguém. Por vezes, chega a ser possível encontrar alguma coisa realmente cativante entre tanto lixo sobre celebridades que rompem casamentos ou passam as férias em alguma praia isolada na Grécia. “Feud” toca nesse ponto e mais: expande seu foco para analisar o próprio conceito de fofoca no contexto da história.
Voltando para o começo de tudo na década de 30, Bette Davis e Joan Crawford competiam inevitavelmente por estarem entre as maiores estrelas de seu tempo. O sucesso de uma poderia significar o fracasso de outra, considerando a falta de oportunidades para todos e a multidão de outras pessoas tentando agarrar uma oportunidade de crescer. Até aí, nada muito fora do comum. O próprio começo de “Feud” mostra uma relação sem animosidade real, sem um antagonismo trazido de casa por ambas as partes. Mesmo porque as duas estavam em um ponto baixo de suas carreiras, com pouca energia e intensidade para sair buscando briga sem motivo. Não fazia sentido para nenhuma delas sair brigando desde o começo, porém para outras pessoas era interessante jogar lenha na fogueira por um simples motivo: publicidade.
É como o ditado diz: “Fale bem ou fale mal, mas fale de mim”. Especialmente favorável para o diretor e o chefe de estúdio era manter seu filme na boca do povo, pois, querendo ou não, era uma forma eficiente de despertar a curiosidade e talvez vender ingressos. O público, por sua vez, estava mais que feliz recebendo notícias sobre duas divas de meia idade se bicando, talvez até imaginando uma dinâmica cartunesca no set: uma colocando tachinhas na cadeira da outra e se escondendo para ver sua própria sacanagem em ação. Absurdo em todos os sentidos, para dizer pouco, embora alguns momentos cheguem surpreendentemente perto deste nível de galhofa. Só que este não é o material central de “Feud” como obra, que prefere colocar seus olhos sobre oportunistas como Hedda Hopper (Judy Davis) e expor que, embora cômica em diversos momentos, a rixa das duas atrizes tinha um lado muito pouco divertido.
Ficção mais que validada por interpretações incríveis.
Então abrem-se dois caminhos. Um deles explora a relação peculiar das duas atrizes em si, adversárias num trabalho que deveria ser cooperativo; e o outro mostra todo o ambiente que influenciava a relação das duas e por elas era influenciado de volta. Sobre este primeiro ponto, é possível ter um vislumbre inédito da vida das protagonistas, tão prazeroso quanto ler uma biografia e enxergar coisas que nunca ficaram evidentes em seu trabalho no cinema. Todo trabalho artístico bem realizado, especialmente a atuação, faz o público sentir-se conectado intimamente com a pessoa por trás da obra; no caso do cinema, com os personagens e os dilemas que enfrentam em suas rotinas. No entanto, há uma significativa diferença entre achar que sabe de algo da vida pessoal do ator e ser apresentado à rotina dele propriamente dita, o que também não quer dizer que “Feud” é completamente fiel aos fatos. O seriado coloca a vida pessoal de Crawford e Davis como o centro de sua história, então ao menos pode-se dizer que é um passo a frente das reações fortes provocadas pela catarse, processo ainda baseado em suposição a respeito da realidade, no final das contas.
Mesmo que muito dos fatos de “Feud” não sejam fatos de verdade, eles poderiam muito bem ser. Em primeiro lugar porque o roteiro não toma liberdades absurdas — exceto pelo último episódio, que ainda assim justifica seu propósito — evitando especialmente cair na já comentada tendência de focar nos escândalos tão almejados pelos fofoqueiros. Seu tratamento das personagens como pessoas de verdade, acima de tudo, é um ótimo norteador para todo o resto do conteúdo. Os eventos parecem críveis e poderiam muito bem ter sido verdade se as interpretações de Jessica Lange e Susan Sarandon forem tomadas como referência. As atrizes abraçam duas enormes tarefas e são muito bem sucedidas: fazer o espectador acreditar na história contada e, obviamente, enxergar Bette Davis e Joan Crawford nelas.
Quanto a esta segunda parte, fiquei um pouco cético inicialmente, pois Jessica Lange começa saindo na frente. A obsessão de Crawford por conservação, por exemplo, existe no âmbito da caracterização — uma mansão cheia de móveis que seriam lindos se não estivessem cobertos com plástico — e é refletida na própria personalidade dela: obcecada por conservar sua aparência e status do passado. Além do mais, hábitos como se passar por pessoa agradável, controlada e sensata disfarçam faniquitos, agressividade e insegurança, como fica claro logo na sequência. Enquanto isso, Susan Sarandon não convence imediatamente. Não porque ela está em má forma, e sim porque Bette Davis possuía um gênio tão forte quanto ímpar; constantemente imitado sem que a original seja igualada. Sem dizer que Sarandon realiza o feito, ela faz um trabalho progressivamente convincente conforme sua personagem ganha mais espaço na trama, algo que não demora nada para acontecer. No fim das contas, nem parece mais que são atrizes interpretando outras atrizes lendárias. A preocupação sobre eventos fictícios, então, tem sua existência obliterada.
Um grande pesadelo para todos os envolvidos.
O outro caminho, referente às pessoas que conviviam com Davis e Crawford, também não deixa a desejar em nenhum aspecto. O elenco coadjuvante de “Feud” como um todo oferece contribuições valiosas para um estilo de vida que não tem absolutamente nada de comum. Se existe uma característica definitiva para a vida das protagonistas, mesmo com carreiras em baixa, é complicada. Cada pessoa que cruza o caminho delas traz algo de relevante e diferente, evidenciando um caráter multifatorial, para não dizer louco e caótico, de suas vidas. De um lado, a filha de Bette Davis a deixa louca enquanto Joan Crawford arranja um jeito de ser elegantemente desagradável e Jack Warner (Stanley Tucci) dificulta a vida de Robert Aldrich tanto quanto possível. Fatores externos cuja influência pode ser vista perfeitamente ao longo dos dias de trabalho no set de filmagem.
Destes coadjuvantes, Aldrich é facilmente o mais interessante. Vida profissional e pessoal também se entrelaçam em seu caso, com o diferencial de que ele é o diretor do filme e tem uma participação especial nestes dois âmbitos. Talvez não tenha sido a intenção direta de “Feud”, mas o seriado traz um retrato muito rico da profissão de diretor: sua importância dentro do set, sua relação polivalente com o elenco e as consequências de decisões. Como Elia Kazan disse uma vez, tudo que acontece num filme é de responsabilidade do diretor, diretamente ou indiretamente. Sobre os casos diretos, cuja responsabilidade pode ser mais facilmente atribuída, fica claro que Robert Aldrich não é nenhum inocente. Mas ao mesmo tempo que ele tem sua parcela de culpa, é impossível não se sentir conectado ao seu conflito e dificuldade com Alfred Molina deixando perfeitamente claro como é difícil estar em seus sapatos, lidando com dois egos do tamanho de mil sóis. Três, se Jack Warner entrar no pacote.
Imagino que muito de “Feud” seja ficção por conta da dificuldade de acesso a muitos dos eventos mostrados. Eventos dentro do set, tudo bem; a rotina do elenco e boa parte de sua vida pessoal, não tão fácil. Mesmo assim, o roteiro nunca acende o alerta de artificialidade e consegue levantar pontos comprovadamente existentes em histórias de tantas outras atrizes da época. Em especial, o fato de que por trás de todo o entretenimento proporcionado voluntariamente existiu uma cultura de manipulação, exploração e sofrimento. O amor dos estúdios por suas atrizes era verdadeiro até que elas parassem de ser rentáveis, isto é, uma fonte constante de pressão para continuar sendo relevante. O resultado de tudo isso? Um estilo de vida consideravelmente difícil de conduzir e, por vezes, acompanhado de atos desesperados, que chegavam ao público como algo muito distante de representar a dificuldade real. Nada mais, nada menos que fofoca.