“Princesa Mononoke” começa com Ashitaka, o príncipe de um povo recluso do interior do Japão. Seu vilarejo é pequeno e raramente conta com alguma novidade até que um javali gigante emerge da floresta em direção ao povoado sem boas intenções. Ele é identificado como o líder da tribo dos javalis, mas tem a aparência horrenda de alguém consumido pelo ódio, um demônio que deixa uma marca amaldiçoada em Ashitaka pouco antes de ser derrotado. O príncipe é forçado a sair pelo mundo em busca de uma cura, porém ele encontra um grande conflito entre forças da natureza e os seres humanos que tentam se aproveitar dela para seu próprio benefício.
Ainda não assisti a filmes o bastante do Estúdio Ghibli para definir se uma idéia que tive é uma tendência real ou não. De qualquer forma, a característica que mais ficou em minha mente depois de assistir a “Princesa Mononoke” e “A Viagem de Chihiro” foi como ambas possuem mitologia e universo vivos, que se relacionam com a audiência para além de introduzir um plano de fundo para os eventos principais ou elementos meramente interessantes. Mais do que serem excelentes histórias — um grande mérito por si — ambas possuem um ar de fábula. Não por um extremo apego ao romantismo, finais felizes e uma mágica otimista, mas por abordar temas elementares, diretamente conectados à natureza humana em sua forma mais primordial.
Tudo isso enquanto na superfície pode-se encontrar um misto do Japão feudal, o mesmo das imagens já conhecidas de Akira Kurosawa, junto de traços de fantasia que se encaixam perfeitamente naquela realidade sem parecer que estão simplesmente sobrepostos a algo inconfundivelmente real. Neste quesito, é mais ou menos como nas fábulas: Alice encontra um coelho atrasado no País das Maravilhas e não questiona o fato dele falar e muito menos o de ele conhecer o conceito de estar atrasado. Similarmente, os personagens de “Princesa Mononoke” tratam vários elementos do folclore japonês como parte de seu mundo sem considerar nada fora do comum. Pode não se ver um demônio todos os dias, mas ninguém desmaia de surpresa quando se encontram na presença de um. Este conjunto peculiar de regras é uma proposta duplamente interessante: samurais, vilarejos rurais, guerras entre lordes e estradinhas de terra misturam-se a espíritos da floresta, deuses-animais e outras criaturas místicas.
Com um plano de fundo destes, uma história ambiciosa ganha um solo extremamente fértil para plantar suas sementes e esperar resultados extraordinárias. “Princesa Mononoke” vai além da busca pela cura para uma marca demoníaca, vai além de Ashitaka, da princesa dos lobos e até mesmo do conflito entre homem e natureza. A moral da história, por assim dizer, tem muito mais a ver com questões básicas de poder, ganância e egoísmo. Nada limitado a mensagens moralistas sobre sustentabilidade ecológica que apontam o dedo para a humanidade e mostram como ela deve parar de seguir seu caminho destrutivo e sem volta. Ser direto ao ponto pode funcionar às vezes, mas não quando se trata do núcleo da obra e especialmente quando ele trata de pontos que podem ser muito pouco apelativos quando falados em voz alta. Certas coisas são melhores absorvidas sutilmente do que expressadas.
O segredo de “Princesa Mononoke” é pintar o simples com as cores de um Épico. Pode até se tratar das coisas mais simples da existência humana, mas por que não colocar diversos arcos que tratam de temas diferentes para fortalecer o argumento? Contanto que não sejam adições meramente estéticas ou de valor duvidoso, é uma idéia que funciona muito bem. Todo o plano de fundo, como apontado, vai além de enfiar criaturas místicas para preencher funções bem definidas e identificáveis na trama. Existem deuses envolvidos sem nada de estereotípico sobre si. Agressivos, cheios de energia primitiva e pensamentos que não dizem nada a respeito de mentalidades elevadas e sábias; forças da natureza com objetivos orientados pela autopreservação e a proteção daquilo que consideram sagrado. Definitivamente é uma imagem diferente daquilo que se costuma imaginar quando se fala de um deus onipresente e invisível ao mesmo tempo, estando mais para a versão grega de divindade com características e personalidades notavelmente humanas. Ou animalescas, como neste caso.
“Princesa Mononoke” é cheio dessas surpresas. Quando algum personagem novo é introduzido ou quando alguma intenção é expressada, o que vem depois realiza o grande feito de esquivar-se de qualquer tipo de expectativa criada previamente. Às vezes trata-se de fazer o simples de jeitos criativos e elaborados — como um conflito entre homem e natureza ser representado com deuses-animais, hordas de animais em guerra e até uma garota criada na floresta; ao passo que outros momentos trazem a ação exatamente da forma como é dita pelos personagens, de um jeito objetivo e direto ao ponto. Em certas ocasiões, espera-se algum tipo de resolução mágica ou fantástica sendo que algo muito mais perto da banal realidade humana é trazido. Ao mesmo tempo que há uma sensação de que tudo é possível, algumas regras da vida real se aplicam organicamente; como os samurais e a tradição misturando-se com toda a fantasia.
Estas surpresas recorrentes funcionam de outra forma também. Conforme tais elementos curiosos vão sendo introduzidos na história, ela vai crescendo e eclipsando tudo o que veio antes. O que parecia ser uma busca da satisfação de necessidades individuais começa a envolver mais pessoas, cujos próprios objetivos ganham cada vez mais atenção até que o espectador esqueça o assunto do começo. Sem cair no caos da falta de foco, “Princesa Mononoke” consegue atar cada uma destas novas pontas soltas ao elo iniciado previamente sem fazê-lo de forma óbvia. Mais do que isso, essa mudança de foco do indivíduo para o mundo a sua volta está em completa sintonia com o próprio trajeto do protagonista, que deve desconectar-se das amaras do egoísmo para abraçar a empatia real e curar-se de sua aflição. Toda adição traz consigo uma expansão do escopo geral da obra e uma oportunidade de explorar questões introduzidas no começo de uma forma muito dificilmente imaginável. Escolhe-se o caminho mais longo para chegar em um mesmo fim sem perder-se na metade.
Quanto aos visuais, chega a quase ser um coral de elogios por conta de toda crítica sobre “Princesa Mononoke” tocar neste ponto. De qualquer forma, não deixa de ser um colírio para os olhos a identidade visual concretizar definitivamente um casamento entre realidade e fantasia já desenvolvido eficientemente pela trama e seu inteligente jogo de brincar com expectativas. Quanto ao filme em geral, não restam dúvidas de que é mais uma incrível experiência proporcionada pelo Estúdio Ghibli. Poucos filmes conseguem construir um universo tão rico e cheio de conteúdo e profundidade a ponto de serem comparados aos contos que sobreviveram ao longo de séculos de autores criando novas histórias. Este consegue.