Christine MacPherson (Saoirse Ronan)… ou Lady Bird, como ela prefere ser chamada, está em seu último ano no Ensino Médio. Chegou a hora de enfrentar as dificuldades que até então ela não conhecia, ignorava ou negligenciava em prol de qualquer outra coisa que soava mais interessante. Tudo que parecia chato ou coisa de adulto passa a projetar sua sombra de forma cada vez mais invasiva e imponente. Lady Bird sabe, no fundo, que terá de parar de fingir que não está nem aí para o mundo, mesmo que ele não esteja nem aí para ela.
Este sentimento de não estar nem aí pra nada é comum, mais frequentemente conhecido como a rebeldia da adolescência ou a tal aborrescência. Adolescentes revoltando-se contra tudo e contra todos, muitas vezes contra pessoas que nunca fizeram nada a eles e acabaram caindo em sua mira por motivos que nunca foram problema. Em outras situações, nem o próprio jovem sabe a razão por trás de sua fúria e acaba fazendo as pazes quando finalmente pondera com um mínimo de racionalidade sobre a situação. Um espectador que já tenha passado por isso pode olhar para estes dilemas e rir ao lembrar que um dia foram considerados dilemas verdadeiros, bobeiras lembradas mais tarde como intrigas juvenis e imaturas de alguém que não conhecia 10% da vida. E, no fim das contas, vale a pena revisitar esses tempos em que as maiores besteiras eram vistas como problemões? Greta Gerwig mostra que sim e, inclusive, que pode ser uma das melhores experiências do ano.
É relativamente comum ouvir alguém dispensar e até rechaçar algum tipo de gênero cinematográfico por motivos completamente individuais. “Quem gosta de documentário nem é gente”, tomando como exemplo uma afirmação prepóstera e exagerada de alguém que acha documentários chatos e tediosos. Prefiro não entrar no porquês específicos que fazem a pessoa gostar desse gênero e não desse, já que eles podem ser muito diversos. Basta dizer que não é o tipo de filme para aquela pessoa, sendo possível ir além dos gêneros conhecidos para analisar apreciação de acordo com o conteúdo — como filmes históricos, políticos, medievais etc. Mas também há a situação oposta. Daria para dizer que a pessoa pega mais leve com os gêneros de que gosta? E que seria um tanto mais exigente com um gênero não muito apreciado? É possível, sim, mas acredito que é uma situação ambivalente. Ao mesmo tempo que as regras podem ficar mais maleáveis quando se trata de um assunto preferido do espectador, ele pode acabar sendo mais crítico também.
Dentre os motivos referentes a essa segunda situação, basta lembrar das inúmeras vezes em que uma obra é criticada por ser uma péssima representante de suas idéias — feministas atacando a representação da mulher em um filme feito por um homem, por exemplo. “Lady Bird” faz o meu tipo: drama envolvendo as relações turbulentas de uma adolescente com seus pais e com a vida em geral. E nem por isso achei o melhor filme de todos os tempos automaticamente. Pelo contrário, olhei com ainda mais atenção para a história para ver se encontraria alguma representação duvidosa ou a confirmação de que estava vendo algo realmente verdadeiro à sua proposta. Felizmente, voltei aos tempos de pequenos grandes problemas sem dificuldade. Com raríssimas exceções, falhei em esbarrar numa cena que me tirasse da experiência e acendesse o alerta da artificialidade.
Como homem, há quem diga que não posso criticar “Lady Bird”, apontar o dedo e dizer o que é bom ou ruim, por não conhecer a experiência feminina em primeira mão. Devo discordar deste ponto. Se, por um lado, nem o mais empático dos homens saberá o que é ser totalmente mulher, não há como categorizar certas experiências naturalmente humanas como algo exclusivo de um sexo. Seguir essa lógica é o mesmo que dizer que um homem não poderia gostar de “Lady Bird”, já que as razões para elogio podem muito bem ser as mesmas que alimentam as críticas dos outros. Independentemente do sexo do espectador, a experiência mostra o impacto de laços de família, de amizade e de romance no desenvolvimento pessoal de uma pessoa. Reduzindo os sentimentos conflitantes envolvidos a um laço entre mãe e filha que só mulheres compreendem, muito se perde. É bem provável que a história soe mais íntima para quem também tinha seus 18 anos na Sacramento dos Anos 2000, porém isso não impede que outras pessoas aproveitem a belíssima experiência proporcionada aqui.
E não, Saoirse Ronan definitivamente não aparenta ter 18 anos. Mesmo assim, ela é uma das maiores responsáveis pelo sucesso de uma obra que leva o nome de sua personagem. Sua cara diz 20 e poucos anos, enquanto sua voz exclama a revolta bruta contra um mundo que estava a seus pés na infância e aos poucos mostrou sua verdadeira face, muito menos amigável e aconchegante. Ronan encarna amplamente o espírito volátil que provavelmente possuiu um dia, resgatando em si os sentimentos que ressoam na audiência como os momentos toscamente tocantes da juventude. Ela está sempre no limite, pronta para explodir na presença do primeiro infeliz que soltar uma palavra errada. Ou não. Boa parte da comédia natural de “Lady Bird”, um atrativo inesperado, vem da pronúncia constantemente agressiva da protagonista em situações que sequer são conflituosas. A fala mais toscamente banal é retribuída com palavras adequadas e uma pronúncia quase ofensiva; tipo o “bom dia” pronunciado em alto e bom som da má vontade numa manhã de segunda feira. Gratuitamente. É como se ela estivesse num estado de rancor constante contra algo que nem ela sabe direito o que é.
Falando em termos de história, é difícil dizer que hã uma narrativa concreta nos padrões de sempre; com um processo de tensão crescente que culmina no clímax que muda a vida da protagonista para sempre. Existem pontos aqui e ali, mas este é um exemplo de narrativa solta — usando um termo chulo — que estrutura-se usando o cotidiano de Lady Bird em seu último ano de ensino médio. Isso significa cenas em sala de aula, no pátio da escola, na sala da diretora, em casa, nas festinhas… Tudo o que se espera e tudo que já foi visto em tantíssimos outros filmes — inclusive o recente “Spider-Man: Homecoming“, por incrível que pareça — está aqui. Tinha tudo para ser uma experiência como várias outras, mas “Lady Bird” funciona especialmente bem porque a seleção destes momentos banais destaca as melhores qualidades de Saoirse Ronan em seu papel. É possível ver seus conflitos e mudanças ao longo do tempo, as superficiais intercaladas com as substanciais e o conteúdo importante revelando-se organicamente enquanto Lady Bird constantemente redescobre a Christine dentro de si e vice versa.
“Lady Bird” é uma experiência simples, porém extremamente eficiente. Sua proposta de expor as dificuldades de uma adolescente na Califórnia funciona espetacularmente bem porque o conjunto da obra, a coleção de momentos de seu último ano de escola, possui o caráter inconfundível de um cotidiano verdadeiro. A falta de um enredo como normalmente se vê por aí não significa uma ausência de continuidade. As coisas acontecem e, como um todo, funcionam perfeitamente na lógica de representar a passagem do tempo com elementos relevantes apresentando-se entre outros que aparentemente não tem importância, mas são essenciais para o sentimento de dia-a-dia almejado. Se ainda assim permanecer a suposição de que a obra foi feita para o público feminino, basta um breve vislumbre na energética Saoirse Ronan para perceber que seu atrito constante com a mãe é arquetípico em sua essência e, consequentemente, de impacto universal. Todo seu trajeto é.