Pensando agora, existem algumas similaridades entre “Snowpiercer” e “Invasão Zumbi“. Ambos são produções sul-coreanas ambientadas em um trem que trafega num cenário apocalíptico. Ambos utilizam o espaço limitado dos vagões para criar cenas de ação fora do comum, mais dependentes da inventividade do que da boa execução de idéias clássicas. Mas há uma diferença elementar: enquanto um trata de uma catástrofe zumbi e da luta pela sobrevivência, o outro usa o trem como uma alegoria para a desigualdade social e a luta de classes. Esta obra de Joon-Ho Bong, adaptação de um quadrinho francês, mostra maior ambição ao abordar questões sociais em meio a toda a ação inserida num contexto singular.
O mundo se tornou uma grande pedra de gelo. Numa tentativa de reverter os efeitos do aquecimento global, a humanidade acabou indo longe demais e causando um apocalipse climático: a temperatura caiu drasticamente e acabou com a vida no planeta. Apenas um grupo pequeno de pessoas sobrevive a bordo de um trem especialmente desenhado para este cenário. Ele nunca para de andar e completa uma volta ao mundo por ano, sendo dividido estritamente pelas classes de seus passageiros. Na frente, a elite aproveita benefícios como escola, comida, festas e vários luxos que o pessoal dos vagões do fundo nem sonha em ter. Mas isto está para mudar. Curtis (Chris Evans) organiza uma revolução buscando igualdade para seu povo.
Existem certos filmes aplaudidos pela crítica e pelo público que não fazem sentido num primeiro momento. Não porque contam histórias surreais usando uma narrativa pouco tradicional; é o aplauso que não mostra-se imediatamente claro. Assisti a “Snowpiercer” e não entendi qual foi o motivo para tantos gostarem do que viram. Ou talvez tenha captado o motivo e falhado em considerá-los algo tão impressionante como apontado pelos outros. É a clássica questão: será que perdi alguma coisa? Parece que não. O juízo de valor é o mesmo, já que gostei das mesmas coisas; só muda a intensidade do meu apreço.
Um aspecto do qual não posso reclamar é a ação. Superando “Train to Busan” neste aspecto por não apelar aos mesmos truques várias vezes, “Snowpiercer” traz um esquema diferente para cada grande sequência. O começo da revolução de Curtis se dá num lugar sem quase nenhum recurso, no qual toda ferramenta e plano são alimentados pelo improviso e da sorte. Sem armas para uma luta, tudo começa com uma multidão movendo-se ao mesmo tempo num espaço comprimido enquanto poucos rostos conhecidos destacam-se entre o caos. De certa forma, é como cenas de guerra em outros tipos de filme, no qual o protagonista e alguns outros personagens podem ser reconhecidos entre tantos outros coadjuvantes em cena. Mas não é só disso que tais momentos são feitos. Os que surgem na sequência diferenciam-se ao usar ferramentas, número de pessoas e até qualidades de cenário diferentes.
Além de aproveitar características esperadas de um trem em movimento, principalmente o espaço limitado e os túneis, a diversidade vem com a ambientação única das seções do vagão. Cada uma tem suas particularidades e, com isso, a ação renova-se por ter de trabalhar com ferramentas diferentes. Às vezes o ataque envolve muita gente desarmada, em outras ocasiões há machados e metralhadoras envolvidas, ou até um antagonista concreto para diversificar o objetivo de derrubar a ordem social opressora estabelecida por Wilfred (Ed Harris). “Snowpiercer” também faz bem em não deixar-se levar pela empolgação e transformar seus vagões num zoológico visual. Sensatez na criação de mundo dá um ar orgânico à composição visual, sempre consciente de que os maiores contrastes devem ser entre o que é visto no começo e no final, não a cada próxima sequência por puro valor de masturbação estética.
Meus problemas começam com o trem — uma micro-sociedade estratificada socialmente — servindo de palco para uma revolução. A idéia inteira soa batida para mim. Mesmo com uma representação visual competente e boas cenas de ação aproveitando as particularidades de cada seção do trem, o enredo não deixa de soar como o estereótipo de trama sobre homem contra estado, uma revolução da prole contra a elite tratada de forma linear. Começa no ambiente de mais absoluta miséria até chegar em lugares progressivamente mais limpos e, finalmente, até a cabeça da serpente. Não dá para dizer que existem muitas surpresas em termos de enredo porque tudo parece ter sido visto previamente. De rosto novo e com muitos detalhes servindo de maquiagem, mas, enfim, a mesma história já ouvida outras vezes com exceção de algumas viradas perto do final. Estas, curiosamente, variam o padrão positivamente e, ao mesmo tempo, prejudicam o todo com revelações de efeito retroativo. Seria uma boa qualidade se não desse um indesejável tom de conveniência a certos eventos que chamaram a atenção negativamente antes, como se tentassem corrigir deslizes prévios.
De tudo isso, meu maior problema foi com a fotografia. Claro, ela merece todos os elogios por tornar prático um ambiente claustrofóbico. Não é uma tarefa fácil orquestrar uma cena envolvendo vários elementos e tornar tudo compreensível, menos ainda quando as composições devem ser condizentes com o pouco espaço disponível. Por outro lado, falando em estética, algumas cenas de “Snowpiercer” são exageradamente escuras e exigem certo esforço para distinguir o que está acontecendo. Tudo bem, entendo a idéia de mostrar o fundo do trem como um lugar precário, sem o mínimo de manutenção para que as lâmpadas sejam trocadas; além da idéia de progressão visual de tornar os lugares cada vez melhor iluminados até chegar na locomotiva. Falando em termos práticos, contudo, a identidade visual prejudica a função básica de um filme: mostrar imagens que possam ser entendidas.
“Snowpiercer” definitivamente não é um filme esquecível. Sua ambientação única, representação visual e cenas de ação até chegam a fazer o espectador esquecer por uns momentos que, no fundo, o enredo ainda se trata do mais básico conto de prole liderada por um indivíduo forte que finalmente resiste à opressão. Mas não por muito tempo. “Snowpiercer” ainda tem problemas o bastante para torná-lo uma experiência menos memorável por sua qualidade.