“Gilda” foi um dos raros filmes a me deixar inquieto. Cheguei a pensar que escolhi uma hora ruim para assistir a um filme, que deveria ter ido jogar videogame ou ler um livro porque talvez não estivesse com cabeça para cinema. Olhava para a tela e me sentia estranho, com dificuldade de focar na tela e notar as pequenas nuances que costumam passar batidas quando o espectador trata a obra como um produto a ser absorvido. Mas também não conseguia criar coragem para pausar no meio do caminho e deixar para ver outra hora. Foi pensando nisso que tudo fez sentido: eu queria mesmo era saber o que iria acontecer na sequência. E o melhor de tudo é que entrei na experiência sem saber praticamente nada sobre o enredo. Este é um caso que recompensa o espectador que entra desinformado, pois sabe estabelecer bem uma atmosfera de mistério e ainda melhor qual a hora de abrir o jogo.
Quando a primeira cena começa a rodar, nem dá para dizer onde a história vai chegar. Johnny Farrell (Glenn Ford), um homem que vive de sua própria sorte, está num pier sujo rolando dados com outros homens de reputação duvidosa. Similar ao Harry Fabian de “Night and the City“, ele parece um perdedor que sonha em subir na vida e sair de sua situação desprezível. Mas as coisas mudam para melhor em seu caso. Ele chama a atenção de Ballin Mundson (George Macready), um dono de cassino, e logo consegue uma posição como funcionário de confiança. Mas quando seu chefe faz uma viagem e volta casado com a estonteante Gilda (Rita Hayworth), a situação fica consideravelmente mais complicada.
Diante da ruína do Sistema de Estúdio nos Anos 50, Hollywood tinha algumas cartas na manga para diferenciar seu entretenimento da televisão, cada dia mais popular. Uma delas foi inovar o formato da tela; deixá-la mais larga que o convencional televisor quadradinho e até tridimensional. Outra forma foi capitalizar nas pessoas que trabalhavam no cinema e deixar claro que a forma de vê-las em ação é indo ao cinema. Para ver Humphrey Bogart e Lauren Bacall, a audiência teria de sair de casa ou contentar-se com as colunas de fofoca de Hedda Hopper. Assim, “Gilda” não poderia ser diferente. Até hoje é um filme lembrado principalmente, especialmente e, muitas vezes, unicamente por conta de Rita Hayworth. Não é sua presença, personagem ou atuação que especificamente fazem a diferença especificamente; muitos dos outros acertos do filme são, além de bons por si, modos de tornar a atriz ainda mais visível. Como se sua beleza não fosse o bastante, há uma produção inteira dedicada a colocar Hayworth no centro do universo. E o melhor de tudo? Os responsáveis por traz desta carruagem do estrelato fazem seu trabalho muito bem.
Se não fosse por eles, este seria o que chamam de veículo de estrela, ou seja, um filme raso que só serve para destacar seu elenco de alguma forma. Seria como um filme de humor imaturo para Adam Sandler ou uma comédia romântica para um rostinho bonito. De fato, não posso negar que a grande atração e os maiores acertos estão diretamente conectados à sua estrela. Mas “Gilda” não tem nada disso. Enquanto um filme pobre arranja desculpas para arrancar a camisa de seu galã para mostrar seus atributos físicos, este Noir investe com seriedade em aspectos variados da produção para o mesmo fim de exaltar sua estrela. Não seria possível tirar Rita Hayworth de seu vestido e mostrar o que há debaixo deles nos Anos 40 e, mesmo se fosse, seria uma solução incompatível com a sofisticação desta produção. Inteligente como é, ela sabe que investir na sedução e no apelo sexual é muito mais vantajoso do que simplesmente dar à audiência o que ela quer; sabe que fazer isso é uma prática hedonista e que o público logo perde o interesse depois de satisfazer seu imaginário.
Dessa forma, o filme investe em inflamar a imaginação e os desejos de seu público ao manter Gilda um pensamento constante. Primeiramente, de formas mais concretas, Seu figurino é um perfeito reflexo de sua personalidade ativa e intensa, acompanhando as mudanças da personagem infalivelmente. Sua primeira aparição já diz tudo sobre quem ela é ou, sendo justo com a qualidade narrativa, faz uma ótima introdução à intensidade de sua pessoa. Parte desse sucesso vem por conta de um vestido de renda com uma das alças caídas sobre o braço, o símbolo sutil da sexualidade que não consegue ficar reprimida. Quanto a outros momentos de maior destaque, não poderia deixar de mencionar números musicais inteiramente dedicados a estrelar Hayworth demonstrando seus dotes no canto, na dança e na beleza, Coreografados de forma que a vulgaridade nunca entre em jogo, os números ainda trazem canções de extremo bom gosto para garantir que o espetáculo seja completo.
São acertos indubitavelmente bem sucedidos em sua proposta, mas nenhum deles está sozinho. O roteiro é o responsável por inserir um número musical na hora em que será mais efetivo, por usar uma grande apresentação para tornar o vestido preto com as luvas longas e o cabelo esvoaçante ícones do cinema americano. Mais importante ainda: ele usa a personagem Gilda como a nascente de todas as viradas da história. Sendo um tipo diferente de femme fatale, ela troca a má índole por um apelo sexual aliado a petulância de mais alto grau. Sua energia fica evidente já em sua primeira cena, na qual ela começa uma longa e aparentemente infindável sequência de indiretas e alfinetadas. Cada um desses comportamentos, junto de outros mais espalhafatosamente indecentes, são mais do que traços de uma personalidade insolente, pois sempre deixam no ar que alguma coisa não está sendo dita. Gilda nunca fala o que quer realmente e acha as maneiras mais criativas de perpetuar essa atitude, para o profundo desgosto do protagonista de Glenn Ford.
Entre estes personagens surge uma química muito raramente visto por ser tão forte e relevante para o enredo ao mesmo tempo. A tensão sexual entre os dois é incrível e magnética, um atestado sobre o poder de Rita Hayworth e sua personagem. Tratando-se de um tipo ímpar de atração, ela coloca o espectador numa posição de inquietude constante porque este sabe menos do que todos. Até o Tio Pio (Steven Geray), o atendente de banheiro, sugere saber o que acontece. Como resultado, o interesse do espectador é alimentado com cada atrito entre Ford e Hayworth, com cada vez que ela é dissimulada ou irresistivelmente provocativa. A personalidade de Gilda, seu passado, atitudes e simples presença acabam sendo motivos de intriga, uma razão a mais para manter a audiência atenta à tudo o que faz. Para alguém que está praticamente no escuro, cada pedaço de informação pode ser vital para entender o que se passa. Mas assim como as curvas de Hayworth, apenas sutilmente à vista, o mistério é sagrado e revelado com a precisão necessária para manter a curiosidade constante.
No final das contas, “Gilda” pode realmente ser uma grande desculpas para mostrar Rita Hayworth desfilando por aí, porém é uma das melhores que poderiam ter arranjado. Ao colocar a atriz como o centro dos segredos e complicações da trama, dar a ela roupas de destaque e espaço para ostentar todas as qualidades, ela vai além de um modelo de corpo. O terreno é precisamente construído e preparado para ela, que deixa bem claro que é mais do que apta a cumprir o que se espera dela. Depois de vê-la em ação, fica claro que qualquer coisa abaixo disso subestimaria sua bombástica presença de tela.