Filmes decepcionantes nem sempre são ruins. Muitas vezes eles simplesmente não correspondem à expectativa do espectador ou preparam o terreno para algo grande e nunca chegam lá, deixando a audiência ansiosa e então frustrada por não encontrar o que estava esperando. “Aguirre, a Cólera dos Deuses” foi meu primeiro filme de Werner Herzog, do qual havia ouvido falar várias vezes sem nunca me empolgar muito por seu trabalho. Curiosamente, minha experiência foi tão morna quanto essas impressões iniciais. Certamente há muito com o que se impressionar, qualidades raramente vistas no trabalho de outros cineastas por conta de sua complexidade ou beleza, porém faltou alguma coisa. Ao final de uma sequência de tantas qualidades, senti que o saldo de uma proposta promissora deixou a desejar.
No Século 16, uma expedição desbrava as florestas do Peru em busca da lendária El Dorado. Índios escravizados carregam damas em liteiras e empurram os canhões de seus captores em meio a lama e pedras do terreno acidentado. Eventualmente, os conquistadores espanhóis chegam a um grande rio que supostamente leva direto à cidade do ouro. Lá, a jornada torna-se ainda mais árdua e possivelmente perigosa. O grupo teme os indígenas hostis que se escondem em cada arbusto, porém não faz idéia que sua própria ganância e a ambição são seus maiores inimigos.
A primeira cena de “Aguirre, a Cólera dos Deuses” é um perfeito exemplo de momento dificilmente visto no trabalho de outros diretores. Uma montanha íngreme é vista de longe, com a câmera movendo-se lentamente para revelar o que jaz entre a amálgama de galhos e folhas. Uma fila de muitas pessoas desce a montanha por trilhas que, sem dúvida, deveriam oferecer pouca segurança, considerando que não houve nenhum tipo de maquiagem sobre as imagens. Sem miniaturas, sem efeitos especiais. Realmente eram dezenas de atores descendo uma montanha de verdade com perigos reais e chances verdadeiras de acidentes. Não precisa de muita criatividade para imaginar onde as coisas poderiam dar errado. Assim como um dominó, bastaria uma mula pisar em falso e ir ao chão para derrubar todos pela frente e causar um problema gravíssimo. Tudo o que se vê aconteceu da forma como aconteceria se fossem conquistadores espanhóis de verdade liderando escravos pela mata.
Esta proximidade do real lembra, de uma forma distante, o que vi em “Mad Max: Fury Road“. Saber que a cena foi feita com efeitos práticos não é o que a torna boa, pois forma não deve ser considerada determinante de qualidade. A diferença é notada quando um carro explodindo e capotando numa planície empoeirada é representado exatamente como um carro explodindo e capotando numa planície empoeirada. Todos os detalhes necessários para uma roda se desprender do eixo e voar longe estão ali porque o evento acontece de fato. É uma surpresa parecida que senti quando vi a cena de abertura e uma nuvem passa diante da câmera. Sim, a gravação foi feita de uma altitude tão absurda que uma nuvem pode ser claramente identificada em meio ao resto da ação. Acidentes convenientes como esse despertam a curiosidade sobre como tudo aquilo foi possível e prendem a atenção com a perpétua ameaça do perigo. De certa forma, “Aguirre, a Cólera dos Deuses” é como assistir a um vídeo de alguém fazendo algo estúpido ou perigoso e esperar tudo dar errado.
“Aguirre, a Cólera dos Deuses” mantém esta atmosfera praticamente até seus momentos finais. Depois de descer montanhas e caminhar por trilhas transformadas em lama pelo ar úmido e todas as pessoas que passaram antes, os exploradores chegam num rio e, obviamente, a jangada que eles constroem é real. Todo o tempo que a história se passa nesse ambiente, é possível notar que a água muitas vezes invade a frágil superfície do barco. E, bem, tudo que separa um rio furioso de Werner Herzog, a câmera e o resto do elenco é um conjunto de galhos amarrados juntos. A intensidade deste e outros momentos, como quando outra jangada fica presa na contra correnteza, reside em sua credibilidade. É muito mais potente que uma cena similar em “How the West was Won”, por exemplo, porque a tragédia não é ocasional ou dramatizada de acordo com a conveniência do roteiro, mas vivida e explorada em toda sua extensão verdadeira.
No entanto, ainda restou um sentimento estranho. Se tudo isso funciona tão bem, como pode “Aguirre, a Cólera dos Deuses” ser decepcionante? Pois bem, o perigo real enfrentado pela produção impressiona e mantém vivo o interesse pela obra, mas é uma qualidade que caminha sozinha, sem um perigo equivalente no enredo para torná-lo interessante também. Em termos de história, a única contribuição notável desta abordagem crua é a caracterização dos personagens. Os espanhóis e sua jornada são vistos sob um olhar que não perdoa suas piores falhas. Quando um personagem é coroado imperador da futura El Dorado, por exemplo, não há cerimônia ou um mínimo de formalidade envolvida; mais ou menos como a independência do Brasil, proclamada num lamaçal de cima de uma mula. De resto, nada mais agrega valor ao enredo. Sua progressão e eventos propriamente ditos tornam a experiência um tanto branda, carente de emoção real.
Com isso em mente, definitivamente não posso acusar Werner Herzog de ser infiel à sua proposta. Ele busca capturar as coisas com uma tendência realista e usa todas as ferramentas disponíveis para atingir este fim. Isso influencia, em grande parte, a aventura em si e os personagens, retratados como estúpidos em armaduras meio enferrujadas numa jornada fadada ao fracasso desde o começo. Não é um impacto narrativo que transforma a trama em algo interessante. “Aguirre, a Cólera dos Deuses” tem várias qualidades, mas falha no aspecto elementar de contar uma história tão cativante quanto o esforço empregado em concretizá-la — ainda mais quando o diretor roubou a câmera usada para gravar o filme.