Filme alemão sobre nazismo. Filme brasileiro sobre favela. Filme italiano sobre fascismo. São assuntos tão ligados à nacionalidade que qualquer nova tentativa seguindo o mesmo caminho já não chama a atenção, sendo inevitavelmente comparadas aos grandes que vieram antes. Claro, isto não é afirmar algo sobre a qualidade das obras ou sobre a validade de falar de um tema popular; até porque se houvesse algum tipo de restrição ou número limitado de histórias sobre o mesmo assunto, muita coisa se perderia. Nem todo filme sobre nazismo fala sobre a guerra ou sobre judeus. Há tantos lados a serem explorados em torno de um mesmo evento que julgar levianamente é como jogar no lixo uma diversidade de possibilidades. “Um Dia Muito Especial” é a síntese dessa idéia. Assim como “Amarcord“, que brinca com o fenômeno do fascismo e o encaixa numa história ampla, o longa de Ettore Scola usa o encontro de duas pessoas como o avatar do caos cultural, social e político da época.
1938: Adolf Hitler visita a Itália pela primeira vez. O país todo congela suas tarefas diárias para ir às ruas e ver o grande evento organizado pelo governo. Cidadãos vestem suas melhores roupas, soldados marcham e todos anseiam o grande encontro de Benito Mussolini com o Führer. Mas existem exceções, duas delas, em especial: Antonietta (Sophia Loren), dona de casa, e Gabriele (Marcello Mastroianni), um jornalista recluso. Ambos ficam em suas casas enquanto o resto do país assiste às passeatas, mas por motivos diferentes. Ela deve cuidar do lar e preparar tudo para a chegada da família; ele ocupa-se com uma pilha de cartas e seus próprios pensamentos. Quando os dois finalmente se encontram, o dia mostra que será especial de sua própria maneira.
O que pode haver de tão incrível em ficar em casa quando um evento histórico acontece nas ruas? Como alguém consegue ficar estático quando a história acontece diante dos olhos e ouvidos, fora da janela e narrada constantemente no rádio? Pois bem, é aí que “Um Dia Muito Especial” diferencia-se do clichê e do previsível; esquiva-se da expectativa criada pela audiência quando ela lê a premissa, ou seja, mais uma história envolvendo os assuntos de sempre. Apenas os primeiros minutos podem ser conectados a um teor histórico-documental no estilo “Triunfo da Vontade“, o resto pende muito mais para uma versão Drama de “Janela Indiscreta”. Dois vizinhos moram no mesmo prédio sem nunca terem conversado, unidos apenas por vislumbres distantes entre janelas opostas e separados pelo grande vão entre eles. De certa forma, esta distância não é apenas literal mas também metafórica, pois quando eles se encontram e começam a se conhecer — consequentemente revelando-se ao público — é possível notar como eles são pessoas bem diferentes.
Sua relação mostra mais do que a diversidade de personalidades presentes no mundo, fato óbvio e até um tanto simplista. Ettore Scola busca exacerbar as diferenças elementares entre pessoas tão próximas em termos humanos e tão distantes quando se fala em ideologia e mentalidade. Sua química é imediata e parece assustar até mesmo os personagens, que não sabem como reagir a um encontro marcante quando este finalmente se apresenta. Acostumados à inércia e ao tédio do dia-a-dia, eles agem como animais se deparando com algo totalmente inédito, ao qual não seu instinto não oferece recurso comportamental algum se não fugir de alguma forma. Então alguma luz mental acende e a situação muda. Agir como um excêntrico de uma hora para outra, com comportamentos sem sentido e até bizarros é uma das formas encontrada para quebrar o gelo, a distância que sempre existiu entre aqueles dois indivíduos. Rumba, pássaros, filhos, café, os três mosqueteiros e todo o mais tornam-se desculpas para aproximá-los. “Um Dia Muito Especial” escolhe um apartamento e toda sua banalidade como ferramenta principal para mostrar que, na verdade, a parte interessante da vida está dentro de casa, não fora dela.
De um modo brincalhão, mas não alegórico como Fellini, Scola une dois mundos remotos manipulando mais o conteúdo do que a forma na exposição dos ideais de seus personagens. Dessa forma, ele parte de uma narrativa mais tradicional sem necessariamente cair na formalidade de um encontro marcado. Assim como as coisas começam por acaso, elas se desenvolvem a tropeços orgânicos e totalmente cabíveis. Marcello Mastroianni e Sophia Loren praticamente brincam em seus papéis conforme se conhecem, com piadas e palhaçadas encaixadas tão naturalmente que dificilmente diria que muitas foram roteirizadas. As partes importantes dessa interação, por outro lado, mostram que “Um Dia Muito Especial” não se trata apenas de duas pessoas se conhecendo por acaso e criando intimidade espontaneamente. Pelo contrário, essa mesma espontaneidade é uma ferramenta essencial para a história não revelar prematuramente para onde está indo. Do jeito que tudo acontece, a relação poderia ir para inúmeras direções sem parecer forçada ou artificial. Seria uma rara oportunidade de experimentar coisas novas ou explorar o de sempre com muito bom gosto, mas Scola escolhe um caminho surpreendente para seguir adiante.
Curiosamente, a história dá toda essa volta para, enfim, retornar sua atenção aos efeitos do Fascismo na sociedade italiana. Talvez soe como uma decisão frustrante depois de trocar os eventos grandiosos pela normalidade do lar e a humanidade de seus protagonistas, mas funciona porque usa-se uma perspectiva inesperada para explorar o conhecido. Quando falei sobre a validade de abordar um mesmo tema várias vezes no cinema, me referi exatamente ao que vejo em “Um Dia Muito Especial”. Se fosse para ignorá-lo simplesmente por ser um filme italiano que aborda um assunto popular, muito seria perdido porque há riqueza na intimidade dos personagens. Toda sua relação é carregada de subtexto e sutilezas que constroem o grande argumento sobre a Itália e seu posicionamento político controverso. As cenas mais fortes surgem justamente quando o espectador espera que o óbvio acontecerá e o filme reage de maneira totalmente oposta, reabrindo magnificamente o espaço entre personagens até então considerado extinto. Literalmente ou conotativamente, é uma ferida que nunca fica muito tempo fechada.
Diferente da minha experiência com Jean-Luc Godard e “Nouvelle Vague”, não posso reclamar de nada a respeito de minha introdução ao cinema de Ettore Scola. “Um Dia Muito Especial” me cativou desde seus primeiros momentos com um plano sequência que sobe das ruas até a janela do apartamento de Antonietta e une perfeitamente as gravações históricas com o começo da história. Desenvolvendo-se organicamente e nunca dando indícios de suas intenções, este longa olha para o grande aglomerado da sociedade pelo viés mais imperdoável: o íntimo, pessoal e individual.
2 comments
Ótima perspectiva. Você já assistiu Dead Man Walking de 1995 dirigido pelo Tim Robbins? Se houver feito, pode escrever uma análise sobre ele?
Fala Daniel! Ainda não tive a oportunidade de assistir, mas tá na lista faz tempo. Vou dar uma agilizada e tentar publicar em breve! Abraço