“Céu sem Estrelas” conta a história de duas pessoas divididas por uma guerra não declarada. Anna Kaminski (Eva Kotthaus) é uma das pessoas que arriscam a vida frequentemente ao cruzar a fronteira entre as duas Alemanhas. Seu filho mora no lado Ocidental e ela não aguenta mais viver sem ele, mas não pode sair de onde está porque cuida de seus avós idosos. Numa tentativa de cruzar para o outro lado, Carl Altmann (Erik Schumann), um policial da fronteira, ajuda ela a resgatar a criança. Aos poucos, os dois se vêem cada vez mais unidos pelo amor e separados pela fronteira entre países.
A Alemanha passou por uma montanha russa de eventos históricos em pouco mais de 50 anos. Uma guerra contra o mundo foi travada e perdida, deixando o país em ruínas e a economia ainda pior. Um regime totalitário subiu ao poder com um maníaco na liderança, tirou o país da miséria econômica e culpou o resto do mundo pela situação, engatando outra guerra na sequência. Outro conflito perdido e o país destruído novamente, dessa vez literalmente dividido em duas partes: Alemanha Ocidental e Oriental. E quanto à indústria cinematográfica, como ela ficou neste apocalipse? Dá para dizer que é impressionante o fato dela ter permanecido viva apesar de tudo. Talvez toda a experiência vivida tenha mantido acesa a chama da expressão artística, a vontade de comunicar vivências por meio de um ponto de vista pessoal. “Céu sem Estrelas” é uma das produções alemãs do período da Guerra Fria, uma das poucas a abordar a divisão do país abertamente.
Tal fato é curioso. Dada a grandiosidade do evento histórico — um país literalmente repartido entre duas potências — não consigo imaginar como documentaristas e cineastas de ficção conseguiram segurar a emoção e não falar das coisas que aconteciam no país. Quanto ao lado oriental, é compreensível que as produções sejam mais escassas por conta da repressão governamental sobre produções artísticas. Muitas obras foram banidas ou demoraram décadas para serem lançadas por não estarem nos conformes da visão soviética, portanto é possível imaginar que histórias criticando a existência de uma barreira no meio do país seria vetada. Já no lado ocidental, não enxergo razões para o assunto não ter sido abordado mais frequentemente. Por fazer parte de um grupo pequeno de produções sobre a divisão territorial, “Céu sem Estrelas” carrega o peso de ser um representante digno de um tempo histórico único. Felizmente, não posso acusá-lo de fazer mal esta tarefa.
Combinando aspectos de duas grandes vertentes do cinema, o documentário e a ficção, “Céu sem Estrelas” começa com uma narração fria contextualizando o espectador sobre a situação política do ambiente. Imagens de fronteiras bem protegidas acompanham os dados pessoais dos personagens como se estes fossem figuras importantes — o Gavrilo Princip da Grande Guerra ou o Robespierre da Revolução Francesa. Os nomes inteiros dos protagonistas são mencionados junto com o lugar de moradia e o destino eventual deles. “Essa é uma história que poderia ter sido, mas não foi”, como diz o narrador. Na sequência, um grupo de moradores da Alemanha Oriental segue por uma trilha na mata para tentar cruzar para o outro lado do país. Contudo, o grupo é emboscado por policiais da fronteira e detido em flagrante. Uma mulher foge num piscar de olhos, com tiros no seu encalço enquanto cruza o rio a nado. Orientando-se pelo viés documental, poderia ser apenas mais um grupo de desesperados tentando a sorte e refletindo o fenômeno político explorado pela obra.
Então as coisas deixam de serem formais e impessoais para mostrar quem é a mulher que fugiu e qual sua importância dentro de um contexto sociopolítico conturbado. Ou melhor dizendo, qual a importância deste mesmo contexto em sua vida. A narração continua, mas de forma esporádica e sem determinar o caráter da obra. Não há demora para mostrar que o foco real é o relacionamento de Anna Kaminski e Carl Altmann, que a situação vivida é um obstáculo que se coloca entre eles de forma intrusiva em vez deles serem meros elementos numa narrativa centrada no ambiente. Quando Anna chega ao outro do lado do rio e praticamente dá de cara com Carl, fica claro que o compromisso de “Céu sem Estrelas” é com sentimentos humanos e a luta para mantê-los vivos apesar das dificuldades.
O desenvolvimento do relacionamento entre os dois é a melhor parte da experiência, sem dúvidas. Mesmo que não comece da forma mais natural possível, ele é representado honestamente através da combinação de interpretações fortes e do uso inteligente do cenário como ferramenta narrativa. Como cada um mora de um lado da Alemanha, encontrar-se não é uma simples questão de convite e comparecimento, envolve esforço de duas partes que possuem suas vidas em paralelo. Mais do que repetir o mesmo truque várias vezes, “Céu sem Estrelas” adiciona uma complicação progressiva em sua trama ao mostrar que o cenário também tem vida própria, indo além de um obstáculo estático. Conforme a segurança se torna mais rigorosa e apertada, os encontros ficam mais difíceis, porém mais satisfatórios e intensos. Erik Schumann e Eva Kotthaus imprimem em suas expressões o quanto seus personagens anseiam pelos reencontros antes mesmo da reunião presente terminar. Neste ponto, é impossível dizer que a alma da história é algo diferente do envolvimento entre Anna e Carl, pois praticamente se esquece do que a narrador diz no começo: “Essa é uma história que poderia ter sido, mas não foi.”
Meu grande problema com “Céu sem Estrelas” dá as caras quando chega a hora de honrar a segunda parte dessa afirmação. Quanto ao que poderia ter sido, o romance envolve o espectador e amplifica cada momento de ternura para torná-los tão duradouro quanto possível, finalmente dando a impressão que talvez aquilo seja para sempre. Mas não é. E quando chega a hora de mostrar isso, o filme adota uma atitude surpreendentemente grosseira. Seja pela apresentação dos elementos que vão complicar a situação, cuja ordem denuncia intenções antes da hora ou os mostra quando já não há mais tanto impacto, ou pela direção geral, manuseia-se mal cenas que poderiam fazer a audiência sentir o verdadeiro efeito dos eventos. Entonações forçadas na trilha sonora, por exemplo, só pioram a situação ao invés de torná-la mais potente.
A adição de elementos do Documentário em uma história ficcional, investida principalmente no trajeto de seus protagonistas, traz resultados ricos. A relevância do contexto histórico se conserva e delega aos protagonistas o papel de porta-vozes da situação em que vivem. Pela história aproximar-se tanto deles e mostrar sua intimidade tão sinceramente, o retrato das dificuldades enfrentadas pelo povo alemão naquela época é muitíssimo bem representado. Mesmo sendo uma das poucas obras a abordar a divisão entre oriente e ocidente, “Céu sem Estrelas” é um ótimo representante de seu tempo.