“Pat Garrett & Billy the Kid” me colocou para pensar no quanto Sam Peckinpah gostava do Faroeste, ou melhor, se ele gostava do gênero realmente. Como uma carta mal criada e pessimista ao gênero, este longa constrói-se pela subversão e desconstrução de vários estereótipos já batidos na época. Depois de mais de 50 Anos de faroestes no cinema, já não havia mais tanta graça mostrar bandidos roubando trens e brancos contra índios. O caminho de Peckinpah afasta-se disso, o que foi feito de uma forma um tanto única: colocar todos os papéis ao avesso. Arrastar o típico caubói paladino por um extenso lodo de imoralidade; mostrá-lo fazendo barbaridades enquanto o cidadão comum assiste imóvel.
Representando estes conceitos está uma das mais populares histórias reais do Velho Oeste, a de Pat Garrett (James Coburn) e Billy the Kid (Kris Kristofferson). Amigos de bando um dia, inimigos em outro. Os dois andaram juntos por anos e chegaram a ter uma relação de pai e filho antes de Pat decidir abandonar tudo isso e acomodar-se. Sua forma de conquistar isso foi tornar-se xerife de uma cidade e virar-se contra tudo o que acreditava antes. A mando de seus superiores, Pat sai pelo país com um simples objetivo: caçar Billy, seu velho amigo.
Parece que as produções de Sam Peckinpah sempre são praguejadas por controvérsia. “Straw Dogs” foi extremamente criticado por conta de uma sequência de estupro com direito a certos momentos de possível dupla conotação, como se a mulher estivesse gostando de ser violada. Se isto acontece de fato, não vem ao caso. Só permanece curioso como as pessoas ainda dedicam tempo para apedrejar o diretor décadas depois do lançamento original. No caso de “Pat Garrett & Billy the Kid”, a controvérsia surgiu nos bastidores, enquanto o filme ainda estava sendo gravado. Problemas entre os produtores e Peckinpah se escalaram até que o diretor perdeu o controle sobre o corte do longa. Uma versão incompleta e mal concebida, envolvendo nada menos que seis editores, foi aos cinemas de encontro a uma recepção terrível. Por sorte, uma versão com o corte original foi lançada 15 anos depois, sendo muito melhor recebida e tratada até como uma obra prima do cineasta. Esta é a versão analisada aqui.
É fácil imaginar uma história como essa sendo romantizada. O passado de Billy e Pat apresentado como uma amizade fragilizada por traição, a qual coloca um numa missão de vingança contra o outro. O grande acerto de contas entre os dois gatilhos mais rápidos do Oeste, que culmina num duelo no meio da cidade com a população toda assistindo. Nada disso. “Pat Garrett & Billy the Kid” é sangrento e não celebra a violência. Envolve a traição de amizade sem glorificar tal feito. Não há nada de belo em renunciar os próprios valores por benefícios essencialmente egoístas. Pat Garrett sabe perfeitamente bem que caçar Billy the Kid, alguém que andou com ele por anos, é um ato sujo e vergonhoso. Ele tem consciência o bastante para enxergar a verdade sórdida, mas não fibra moral para se impedir de seguir adiante.
Neste grande papel, James Coburn entrega uma interpretação boa e não afetada pela interferência dos produtores. Mesmo com cenas cortadas, os grandes momentos do personagem e ator ficam intocados por estarem intimamente ligados ao enredo. São eles que o diferenciam de um xerife qualquer, um personagem bidimensional, e dão um fardo moral notável para complicar seu posicionamento no universo do Velho Oeste. Contrastando com ele está Kris Kristofferson como um verdadeiro garoto, sem ligar para todos os perigos exaltados pela maioria. Ser caçado pelo melhor amigo não o incomoda. Ele se preocupa apenas com o que está vivendo no momento, sem ambição maior que viver o dia até o final e não esquentar a cabeça. De início, “Pat Garrett & Billy the Kid” apresenta o conflito entre os dois como a base de tudo. Sem ter em quem acreditar, o espectador imagina que deve haver um bom motivo para o amargurado Pat Garrett caçar alguém jovial e tranquilo como Billy the Kid. Mas isso muda.
O grande truque de “Pat Garrett & Billy the Kid” é desconstruir todas as noções padrão criadas automaticamente no começo. Caçar um fora da lei soa como uma proposta direta ao ponto, porém não é como parece. O bandido, odiado e temido por muitos, não tem tanto de cretino quanto é sugerido e até chega a ser um rapaz carismático. Aqueles que convivem com ele têm uma opinião bem formada a seu respeito, muito diferente do conceito popular. Não demora para o espectador perceber que tem algo errado ali. Será a jornada do protagonista é honrada assim? Será o vilão tão merecedor de punição? Então cai a ficha e percebe-se que as regras deste universo estão todas erradas. Neste Velho Oeste, não há honra ou respeito por nada. As pessoas são podres e os mais autoconscientes reconhecem sua condição, mesmo que isso não faça muito por elas. Tal lógica distorcida — feita de pessoas sem valores e não muito diferente do Noir — mostra o rosto com cada ato vil e sujo, deixando o espectador com os duros fatos: suas concepções iniciais são falsas e a verdade é um tanto sórdida. Numa terra sem heróis, o cidadão comum assiste sem intervir e as poucas boas pessoas aturam o que não merecem.
Só não esperava encontrar um ponto negativo na trilha sonora de Bob Dylan, composta especificamente para “Pat Garrett & Billy the Kid”. Difícil pensar que seria o caso quando o clássico absoluto “Knockin’ on Heaven’s Door” foi feito com este filme em mente. Sendo justo, as canções se encaixam bem em vários momentos. Inclusive uma das melhores cenas envolve justamente a canção clássica, que amplifica o contemplativo sentimento de vazio existencial através da força emocional da voz de Bob Dylan e as letras céticas. Por outro lado, Dylan nunca havia composto uma trilha sonora de cinema, sendo uma das várias dificuldades dessa produção conturbada. Provavelmente, parte deste caos nos bastidores afetou a trilha, que mostrou-se mal encaixada em vários momentos; mais parecendo que tentaram colocar as canções de Dylan de qualquer forma, sem pensar se elas funcionavam no contexto. Ao menos Dylan se sai melhor como ator. Quieto na maior parte do tempo, então estrela outra cena incrível quando finalmente fala um pouco mais. Nela, Peckinpah brilhantemente combina tensão e alívio cômico sem um atrapalhar o outro. Um dos sinais ocasionais da incrível competência do diretor.
Devo admitir que a história começou um tanto morna. Não me pareceu que havia muito mais para ser visto além de Peckinpah seguindo sua rotina de inverter o tabuleiro e reordenar os jogadores. Felizmente, “Pat Garrett & Billy the Kid” é um filme que vai se tornando cada vez melhor, suas qualidades ficando cada vez mais intensas e visíveis conforme a caça chega próxima a seu objetivo. O sucesso chega em seu ápice agridoce com a conclusão, de moralidade questionável e excelência inegável. Pensando bem, talvez não se trate de uma falta de gosto do diretor pelo Faroeste. Desconstruí-lo tão profundamente revela que há apreço por trás de uma visão pessimista, algo alimentando a vontade de Sam Peckinpah de se dedicar ao gênero a ponto de reinventar conceitos clássicos.