Por um bom tempo, “Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain” foi o responsável por pelo menos metade dos comentários do tipo: “Como assim você é fã de cinema e nunca viu esse filme?”. Por motivos que não vêm ao caso, entre eles um pouco de desinteresse, demorei para conferir do que se tratava este longa tão amado. Até hoje, 16 anos depois do lançamento original, é comum encontrar meninas se inspirando na protagonista de Audrey Tautou e comovendo-se pela ingênua história de amor como se fosse a primeira vez assistindo. Tamanha é a magia deste filme de Jean-Pierre Jeunet. Se me incomodei alguma vez pelos elogios recorrentes, hoje vejo que nenhum deles foi gratuito.
Criada por uma mãe neurótica e um pai cheio de manias estranhas, era de se esperar que Amélie Poulain (Audrey Tautou) seria um pouco esquisitinha também. Para ela, viver é apreciar pequenas coisas, como colocar a mão num saco de grãos para sentir uma avalanche sensorial ou quebrar a casquinha do creme brulée com uma colher. Parece pouco, mas é o bastante para deixá-la feliz. Já no amor, a vida não foi tão generosa com a garota, que passa tempo demais dentro de sua própria cabeça para pensar no assunto. Isso muda quando, por acidente, ela conhece Nino (Mathieu Kassovitz), um garoto que talvez entenderia suas manias.
Nenhum outro filme capturou tão bem quanto “Amélie” o que é ser um introvertido. Passar horas e horas dentro da própria cabeça, transbordar-se de idéias e possibilidades sobre todas as coisas e depois esquecer de se conectar com o resto do mundo. São tantos pensamentos sobre as intenções de uma pessoa, expectativas em relação a algo, preocupações aleatórias ou mera curiosidade que fica difícil voltar ao Planeta Terra e lembrar como ser normal num ambiente público. Algo como a típica situação de estar viajando longe dentro da mente e alguém subitamente tentar começar uma conversa. O resultado normalmente é, depois da pessoa chamar algumas vezes, uma resposta atrapalhada e quase sem sentido, sem contar as ocasionais ignoradas sem querer.
Amélie Poulain é exatamente assim. Falar por cima que seu hobby é sentir com a mão os feijões dentro de um saco pode ser pouco atraente. Para o introvertido, o sentido está enraizado dentro da mente, tornando difícil verbalizar algo que faz tanto sentido internamente. A única forma de descobrir o que se passa dentro da cabeça de uma pessoa deste tipo é conhecendo-a muito bem ou arranjando um jeito de externalizar esse conteúdo psíquico. Como não há tempo para a primeira alternativa através de um filme, cabe a Jean-Pierre Jeunet representar o silêncio de Amélie com imagens vibrantes e ilustrativas, tarefa que ele cumpre de um jeito totalmente compatível com a personalidade de sua personagem. Peculiar, ingênua e adorável definem bem a experiência proporcionada por este longa.
Em outra situação, a primeira coisa que questionaria seriam as inúmeras vezes em que a história aborda assuntos irrelevantes, de certa forma. De que importa saber que o vizinho tem ossos de vidro e tem móveis acolchoados? Ou que a vizinha tem um marido que morreu na guerra? Ou a obsessão de um cliente do bar por uma das garçonetes? Primeiramente, tudo tem seu lugar na historia depois que Amélie assume a tarefa de trazer felicidade para os outros. Mas esta é uma parte menor da função destes eventos. Se fosse apenas isso, com certeza ficaria insatisfeito porque o impacto em termos de enredo é pouco em relação à seu tempo de tela. Cada um desses desvios da trama principal é longo e curiosamente específico nos detalhes, exaltando o suposto propósito disso e até um certo estranhamento quando eles começam a surgir. Seria um problema em um filme diferente, sintomas de um roteiro sem foco, porém não aqui.
Não é típico do introvertido pensar no que se passa pela cabeça do outro? Um apaixonado então, com um interesse mais que especial no que o amado gosta, ponderando se este estaria, por acaso, pensando em romance também. Todavia, tentar entrar debaixo da pele do outro usando a imaginação não acontece só com os pretendentes. De certa forma, pessoas aleatórias despertam a curiosidade pelos menores motivos. Falando em alguém imaginativo como Amélie, criada de forma que a imaginação tornou-se um refúgio da família pouco calorosa, a tarefa tem até um toque especial de prazer. É por isso que não me incomoda ver a história sair de seu caminho para mostrar um pouco da vida pessoal de personagens coadjuvantes. Tudo se encaixa na proposta de mostrar a vida pelos olhos de Amélie Poulain e transformar momentos modestos, pequenas satisfações e objetivos ordinários em algo que conquiste o espectador também. E como conquista! Um ou outro exagero à parte, a abordagem de Jean-Pierre Jeunet é incrivelmente pouco pretensiosa, sendo compromissada apenas com a representação fidedigna de quem é a protagonista.
Em conjunto com uma atuação excepcional de Audrey Tautou, muito mais que um rostinho marcante, o sucesso desse estudo de personagem vai longe a ponto de tornar um romance jovem em algo fascinante. Tautou encarna perfeitamente o que é ser uma pessoa que vive dentro da própria cabeça. Poucas palavras nunca significam pouca expressividade, pois ela está sempre em ação de seu próprio jeitinho. O silêncio e a intimidade de sua casa são perfeitos para interagir com seus vizinhos sem que eles possam interagir de volta, como aconteceria numa conversa normal. Dessa forma, ela descobre um pouco mais sobre eles sem se expor. Amélie não sabe como se virar direito nessas situações sociais, então age como sabe: com a ingenuidade de uma criança curiosa e olhadas rápidas para o lado antes de uma saída súbita quando a conversa torna-se desconfortável. Do jeito como as coisas são apresentadas, não há como imaginar outra pessoa além de Tautou no papel.
A única coisa que realmente me incomodou foi uma parte da estética visual. Havia visto “Le Fabuleux Destin d’Amélia Poulain” citado várias vezes como uma obra que usa graduação de cor, mas sempre achei que fosse um exemplo bom. O que encontrei, na verdade, foram imagens manchadas e desbalanceadas num nível que não é belo e até estraga as boas composições de cena. Tirando o infortúnio de ver cenários e tomadas atrapalhadas pelas cores excessivas, não tenho outras críticas. Afinal de contas, o longa é muito bem sucedido em sua proposta de apresentar um olhar íntimo e representar com imagens tudo aquilo que normalmente fica oculto sob os véus da psique. Sendo uma tarefa complexa como é — ilustrar o subjetivo — o sucesso torna-se ainda mais impressionante.