Elia Kazan é facilmente uma das figuras mais controversas da Hollywood Clássica. Na leitura de seu livro sobre direção de cinema, nota-se já no Prefácio algumas das palavras mais apreciativas que já li sobre sua pessoa e carreira. Ao mesmo tempo, não é difícil encontrar gente que o critica e abomina por seu infame ato em 1952, quando delatou vários companheiros perante um Comitê e acabou com a carreira de alguns. Qual lado pesa mais na hora de considerar sua figura depende da pessoa. Há quem separa vida pessoal de trabalho e os que juntam os dois. Mas independentemente de qual posição se adota, a carreira de Kazan tem admiradores o bastante para torná-lo um dos maiores ícones da história do cinema. “A Streetcar Named Desire” é um de seus trabalhos mais famosos e, talvez, sua maior conquista.
Blanche Du Bois (Vivien Leigh) é uma mulher que se considera elegante e bela, acima da vida que ela vive no momento. Depois de perder a casa de família em dívidas, ela se vê forçada a mudar-se para um bairro humilde de Nova Orleans com Stella (Kim Hunter), sua irmã mais nova. Entre delírios de grandeza e embates com Stanley (Marlon Brando), seu cunhado, Blanche sente o choque de realidade conforme a falta de luxo revela suas inseguranças e segredos reprimidos.
Além de grandes performances, as quais fizeram a fama de Elia Kazan como um Diretor de Atores, não sabia bem o que esperar de “A Streetcar Named Desire”. Meu conhecimento se limitava ao fato dele ser amplamente elogiado e premiado com 4 Oscars, em parte pela presença de Marlon Brando no elenco. Até assistir, achava que ele fosse o protagonista e tivesse algum tipo de romance com Vivien Leigh, visto que os dois estão numa posição agressivamente romântica. Claro, não quero dizer que violência pode ou deve ser encarada como sinal de amor, mas é difícil ver outra coisa. O pôster mostra Brando segurando o braço de Leigh com uma cautela incabível a um agressor. Seria como um amante tentando impedir sua amada de partir se a história não provasse o contrário logo no começo.
Talvez esteja completamente equivocado, mas tudo fez mais sentido no final do filme. Sem romance nenhum, “A Streetcar Named Desire” é puramente o drama de uma mulher que acredita ainda estar por cima. Assim, não deixa de ser curioso como a pose dos atores reflete a qualidade da trama de ser uma tragédia grega, pois é delicada e serena como as estátuas da época. Dito isso, Brando não tem nada de protagonista. O grande show é de Vivien Leigh em uma atuação que ilustra seu alcance ridiculamente amplo como atriz. Entre toques da luxúria auto-indulgente de Scarlett O’Hara estão traços mais negros de uma personalidade que passou por muito. Em seus dias de ouro, Blanche Du Bois provavelmente teve toda a glorificação de uma princesa, com rapazes louvando sua beleza e ladrilhando com admiração o chão para ela desfilar. Embora não seja mais assim, ela claramente se agarra a estas memórias queridas numa tentativa compensatória de afastar tantas outras coisas terríveis que também estão guardadas.
Dessa forma, é fácil ser simpático à personagem de Blanche. Ela está em sofrimento, não consegue lidar com a pressão, porém nunca chega a ser um mártir. O roteiro de “A Streetcar Named Desire”, baseado numa peça de Tennessee Wiliams, tem planos maiores para ela. Como em qualquer pessoa, há algo por trás do que é visível. Walt Kowalski, o bruto de Marlon Brando, fareja apenas este lado desconhecido dela como um macho alfa que tem um invasor em seu território e desconfia de tudo. Não há nada de delicado e zeloso em sua relação com Blanche, que se auto-intitula uma pessoa merecedora de carinhos e cuidados extraordinários. Mas nem a grosseria excessiva de Walt segura a pose de vítima dela por muito tempo. Blanche não perde nenhuma chance de criticar o cunhado, seu estilo de vida e suas atitudes para a irmã. Parece compreensível criticar o ogro descerebrado, vendo por cima, mas o conteúdo ocultado pela moça — e que Vivien Leigh deixa no ar tão sutilmente — sugere que seus motivos para isso talvez não sejam totalmente altruístas.
“A Streetcar Named Desire” é uma equação de resultado tão turbulento quanto genial. Cada conflito tem relevância, sustentação narrativa e representação dramática de forma que sempre iluminam uma nova faceta dos personagens. Blanche Du Bois poderia ser simplesmente descrita como uma pessoa problemática, mas o que é conflito e como ele se apresenta? Vivien Leigh mostra que a resposta é tão complexa quanto poderia ser. Um momento de afobação, entre assuntos que se atropelam e emoções caóticas, é acompanhado de uma recorrente preocupação com a própria aparência. A personagem não tem casa para morar ou uma carreira para se orgulhar e, no entanto, está preocupada com estar bonita. É seu refúgio de todo o fracasso que a rodeia. O seu e o dos outros, o qual ela está mais do que disposta a apontar. Leigh leva o espectador por uma jornada de sentimentos e impressões variadas. Impressionantemente, sendo bem sucedida em todas elas. O charme irresistível de Scarlett O’Hara está aqui não como uma muleta para a atriz, mas para a personagem. É nessa condição fantasiosa de princesa irresistível em que ela se apoia e se engana, mentindo para si mesma a fim de não encarar sua situação precária.
Apesar de tantas palavras, ainda sinto que não cheguei na definição perfeita para Blanche Du Bois e seu conflito. Talvez não seja possível definir um fenômeno multifatorial como esse e eu esteja numa jornada falha, porém sei muito bem que descrições e opiniões não são a melhor forma de experienciá-lo. É difícil dizer que há uma corrente lógica de simpatia, curiosidade, estranhamento, repulsa, pena e lástima, pois há momentos em que eles surgem pontualmente e outros que ostentam vários ao mesmo tempo. “A Streetcar Named Desire” realmente impressiona pelas atuações emocionais, enérgicas e completamente eficientes, como esperado, mas nem por isso desaponta em outros aspectos. Elia Kazan é mais responsável do que é imediatamente visível. Sua eficiência provém de uma familiaridade com a história pelas apresentações no teatro e de uma composição de cena que amplifica emoções tão certeiramente extraídas por ele de seu elenco. Na hora de discutir talento artístico e vida pessoal, este filme é um argumento mais do que sólido a favor da contribuição artística de Kazan.