Minha única lembrança de “20.000 Leagues Under the Sea” é um livro infantil ridiculamente resumido a algumas dezenas de páginas. No máximo, sabia o grosso da história: um submarino chamado Nautilus, Capitão Nemo e a Lula Gigante. Pouquíssima coisa para uma obra considerada um clássico da literatura. Até hoje não li nenhuma versão mais completa para compensar este vacilo da juventude, mas tive a impressão de ter dado um bom primeiro passo com essa adaptação cinematográfica da Disney. Seja pelos visuais ou pela riqueza da história, é um filme que conserva seu valor para ser apreciado pelas próximas gerações de espectadores. Não se deixar emburrecer por supostamente ser feito para crianças sem dúvida tem uma grande parte nisso.
Uma série de náufragos deixa o mundo inteiro em pânico. A falta de explicações dá origem a rumores sobre um enorme monstro marinho, os quais nem o Professor Arronax (Paul Lukas), uma autoridade em oceanografia, ousa negar. Tudo é muito estranho para que possibilidades sejam refutadas levianamente. Quando o Professor e Conseil (Peter Lorre), seu assistente, embarcam numa expedição em busca do tal monstro, encontram um submarino comandado por uma figura ainda mais curiosa: Capitão Nemo (James Mason), um homem convicto em cumprir sua missão a qualquer custo.
Uma boa história dificilmente envelhece mal. Mesmo se seus temas forem referentes a um evento ou período histórico específico, seus valores centrais e as metáforas usadas permanecem eficientes se forem bem trabalhadas. Analisar um clássico de acordo com seu contexto de época não deve ser um esforço mental exaustivo para tentar enxergar o que o cineasta tentou comunicar. Assistir com um olhar rigidamente predefinido é fechar-se para novas possibilidades, inclusive analisar conquistas não relacionadas a eventos históricos e checar como o conjunto da obra funciona depois de tantos anos. Quebrar a cabeça não é necessário para ver que “The Day the Earth Stood Still” trata das ansiedades da Guerra Fria e que o monstro em “Godzilla” representa a destruição desproporcional da bomba atômica. Em pleno 2017, são histórias intocadas pelo teste do tempo. Com isso, analisar “20.000 Leagues Under the Sea” por cima mostraria como ele é ultrapassado por tratar um submarino como novidade tecnológica. Não é o objeto que importa, mas o que ele representa. Partindo deste princípio, é possível encontrar as verdadeiras riquezas deste conto de Júlio Verne.
Não saberia dizer se é uma adaptação fiel ou não, apenas que faz um ótimo trabalho em contar uma história sobre a natureza humana. Trabalhando com o conceito de fanatismo em pólos concorrentes, “20.000 Leagues Under the Sea” explora as diferentes formas da manifestação da vontade humana. O mundo inteiro segue em seu ritmo de sempre, cada um executando seu papel na vida sem questionar. De certa forma, até eles agem conforme um código pessoal de fazer o que deve ser feito. Suas atitudes, por outro lado, funcionam mais como uma perpetuação de inércia patológica. É aí que entra o Capitão Nemo, focado numa jornada cujo valor ele conhece melhor que qualquer pessoa. Sua discordância dessa norma vigente alimenta sua determinação de ferro, mas seus métodos distorcem uma idéia inicialmente válida.
“20.000 Leagues Under the Sea” coloca muita coisa em jogo. Além dos recorrentes questionamentos entre certo e errado, que tiram julgamentos rápidos de jogo, há uma série de ambivalências para estruturar ainda mais o conflito. Prefiro não dizer quais são para não estragar as revelações cuidadosamente preparadas pelo roteiro, sempre a uma distância segura da exposição. Posso falar que a chave para este sucesso é o próprio Capitão Nemo, contudo. É ele quem coloca as engrenagens para rodar e o elenco de personagens em ação. Sem Nemo, os outros personagens ficariam na mesma inércia que ele combate. De um lado, o roteiro constrói um personagem singular. Com toda sua rigidez, ele mostra ainda que conhece seus livros, sua comida e sua decoração. Separa-se espaço para explorar o pedaço de personalidade desconectado da grande missão, mostrando como funciona o estilo de vida de um sofisticado eremita dos mares. Ao mesmo tempo, James Mason traz uma interpretação que consegue sugerir profundidade sob estas peculiaridades e a presença de segredos antes mesmo destes serem revelados. É o retrato de um homem ferido, abatido duramente antes de se levantar e usar frustração e raiva como combustível para seguir em frente.
Embora seja classificado por aí como um filme de família e até infantil, “20.000 Leagues Under the Sea” não tem características de algo do tipo. Nemo é facilmente o personagem central do longa e não tem nada de herói. No máximo, é o projeto de um que não deu certo. Considerando-o como vilão, em contrapartida, a história fica sem outro personagem para fazer frente. Paul Lukas e Peter Lorre com certeza não se encaixam no posto de mocinho, muito menos Kirk Douglas — embora ele se esforce para agir como um. As partes que podem agradar crianças são os premiados Design de Produção e os Efeitos Especiais, os quais eleva a idéia simples de uma viagem sub-aquática a uma grande aventura alimentada por fortes visuais. Já há motivo para se impressionar desde o momento em que o espectador conhece o interior do grandioso Nautilus. O interior de algo comum como um submarino troca a claustrofobia de corredores cercados por metal por extravagância inesperada. A grande sala do submarino ostenta toques refinados de uma mansão no estilo clássico, como se fosse um palácio francês com toques de tecnologia mesclados entre sofás de veludo e armários de madeira polida. Fora do veículo, ainda há um oceano inteiro para ser explorado. Vislumbrado de dentro do barco por uma icônica janela panorâmica e, mais importante, em primeira mão quando os personagens conhecem a vida marinha, seus perigos e maravilhas. Neste último aspecto, a magia de efeitos práticos bem feitos mantém a aventura em boa forma mais de 60 anos após seu lançamento.
Sustentando-se com temas sérios e emoções intensas, ambos condensados numa história que valoriza também o aspecto aventureiro de explorar o fundo do mar, “20.000 Leagues Under the Sea” é a sólida adaptação de um dos livros mais famosos do mundo. Temas sérios centrados num protagonista multifacetado embasam uma história dificilmente compreendida por crianças, especialmente com um personagem sério como Capitão Nemo no centro dela. Ao menos ela ainda pode ser apreciada pelos mais jovens por ter humor, belos visuais e espetáculo na medida certa. No mínimo, é um bom incentivo para ler o livro e conferir o conto em primeira mão.