Uma das coisas que me fascinam a respeito do Cinema e de artes, em geral, é a ampla e variada capacidade de ser marcante. Na verdade, isso se aplica a qualquer coisa, incluindo gente — lembradas tanto por serem muito legais como incrivelmente detestáveis. Mas voltando à sétima arte, há um tipo especial de história que fica na lembrança: aquelas esquisitas demais para serem produto de um pensamento comum. As que tratam de profanidade, do que é considerado tabu ou simplesmente inaceitável. “A Serbian Film” é chocante e um péssimo filme, “La Piel que Habito” não se limita a tentar deixar o espectador apenas boquiaberto e encaixa o incomum como valor central de uma história com alto potencial de surpreender.
O Dr. Robert Ledgard (Antonio Banderas) é um dos cirurgiões plásticos mais reconhecidos da comunidade médica. Seus feitos são aplaudidos e cimentaram sua reputação como um grande profissional. Mas seu último projeto, o mais ambicioso e pessoal de toda sua carreira, levantou várias sobrancelhas. Ledgard desenvolveu uma melhoria para a pele humana, tornando-a resistente à danos e queimaduras. Seu trajeto até este resultado, entretanto, fica em segredo. O doutor chegou em sua obra-prima graças a uma paciente que vive no cativeiro de sua mansão, fechada num quarto com tantos outros segredos.
Escrever uma sinopse como essa depois de ver as ramificações dela no filme me faz achar que não tem apelo e é pouco chamativa, assim como várias outras que li. Pensando bem, talvez tenha sido por isso que demorei tanto tempo para assistir a “La Piel que Habito”. Hoje, depois de ver o filme, entendo porque tanto mistério e superficialidade: contar demais arruína uma experiência tão dependente de segredos e mistério. Pedro Almodóvar não faz muita cerimônia para colocar o espectador dentro da obra. Quando este se dá conta, já está imerso em uma situação que não compreende totalmente — ou minimamente, sendo mais justo. Há uma mansão e uma mulher de collant fazendo um alongamento bizarro. Em seu cômodo, portas fechadas e janelas seladas por grossas barras de ferro. A comida chega por elevador e a comunicação com o resto do mundo se dá por meio de um interfone na parede. Poderia muito bem ser um filme de prisão nesta altura do campeonato, pois nenhuma informação concreta é dada e a audiência apenas especula, absorvendo o que é exposto.
A genialidade de “La Piel que Habito” reside exatamente no fato de que se toma uma posição passiva, se posso dizer, frente à narrativa. O espectador sabe muito menos que os personagens e, assim, quaisquer informações dadas dificilmente são questionadas. Elas moldam a opinião do espectador em relação aos eventos da história e têm a capacidade de manipular suas percepções, fazê-lo acreditar no que o cineasta quer que ele acredite. Claro, não é apenas uma questão de reter e controlar informações. A manipulação não pode ser descarada e desconectar o espectador da experiência. É necessário um roteiro familiar à sutileza e um cineasta competente na condução desta proposta, ambas características presentes neste filme espanhol.
Tudo caminha para uma grande virada. Esperado, considerando toda a omissão da premissa. Não pretendo nem chegar perto de sugerir do que essa virada se trata, mas sinto-me na obrigação de falar sobre ela já que estou escrevendo sobre os sucessos de “La Piel que Habito”. Sem contar demais, claro. Uma virada gigante na trama, popularmente chamada de “plot twist”, é uma mecânica extremamente popular graças a sua eficiência vista tantas vezes por aí. Não é infalível, claro, pois muitos cineastas acham que desconstruir o que foi estabelecido e jogar a trama no lixo é um grande feito. Quando trata-se de um mistério bem conduzido como este, pode-se esperar que o resultado não seja este desastre. Aliás, chega a ser injusto dizer que é uma mera virada de eventos. A história trabalha em esferas mais profundas que o simples acontecimento, aborda entonações, sentimentos e questões de identidade visual. Quando a situação é virada de ponta-cabeça, tudo isso muda. A postura de Almodóvar perante sua obra muda. O foco do enredo muda. O filme inteiro e as noções construídas inicialmente mudam. Virada não chega a cobrir a magnitude do evento, transformação seria mais apropriado.
Conversando sobre o filme, comentaram que ele trabalha a idéia da divisória entre amor e ódio ser tênue. Discordo, embora não ache que seja uma comentário completamente inapropriado. “La Piel que Habito” vai mais além do que esta popular antítese. Acredito que a oposição de desejo e repugnância descreva melhor a ambição e ousadia da história. Visualmente, Almodóvar estabelece um clima de sensualidade apesar das circunstâncias bizarras. Uma mulher em cativeiro, sujeita às atitudes estranhas de seu captor, não é a primeira coisa que me vem à mente quando penso num cenário sensual. Mesmo assim, o diretor usa sua conhecida fixação na figura da mulher para romper a barreira do óbvio e criar algo ímpar no processo. A tomada contemplativa de uma mulher deitada de lado em sua cama, com as costas desnudas e a luz apenas delineando suas curvas suaves representa como a direção e a fotografia— próxima de um chiaroscuro — estão em completa sintonia com os temas da obra. É o ponto de vista do protagonista belissimamente interpretado por Antonio Banderas. Alguém encantado por sua paciente a ponto de não conseguir distinguir obsessão de desejo, experimento acadêmico de projeto passional. Olhando por cima, aprecia-se a reciprocidade da qualidade apaixonada daquele vislumbre e o valor estético da imagem, como a cena poderia ser facilmente um óleo em tela. É tão impressionante que se esquece que a moça é uma prisioneira, fato que a próxima cena lembra muito certeiramente.
“La Piel que Habito” se separa claramente de obras ignorantes ao uso inteligente de uma virada por não jogar fora o que foi construído antes da virada. As concepções da audiência, cuidadosamente fabricadas a partir de pontos contraditórios, não são invalidadas. Elas apenas passam a ser vistas sob uma nova luz que inverte o jogo e impossibilita que tudo seja visto como antes. É daí que surge o choque, de um desenvolvimento que realmente leva as coisas para um lugar novo e não se limita a imagens chocantes — seja por conteúdo explícito ou intencionalmente profano.
No final de tudo, é difícil não olhar para trás e reconhecer que a situação final não é nem um pouco próxima das noções iniciais — e muito menos da sinopse rasa. Depois de certos eventos, eu me perguntei como pude me deixar envolver no clima afrodisíaco, em primeiro lugar. A resposta, é claro, vem do empenho bem sucedido de direção, fotografia roteiro e elenco em representar cada entonação e sentimento de forma fidedigna. O que pareceu apropriado em um momento torna-se inadequado e inaceitável. Não por incoerência, mas porque a força de “La Piel que Habito” consegue deixar esta transformação marcada no espectador. Neste caso, o desenvolvimento é tão impactante quanto os resultados.