Histórias sobre pessoas com ideais diferentes das de quem assiste costumam ser experiências curiosas. Filmes não são como pessoas. Ouvir alguém numa roda de conversa tagarelar sobre idéias absurdas não é como assistir a uma obra sobre alguém que pode ter estas mesmas idéias. O protagonista de “I Cento Passi” poderia me cansar com dois minutos de conversa, mas assisti a quase duas horas de sua história sem sentir vontade de desligar a televisão. Apesar da sugestão de algo ruim, o saldo é positivo, ainda que existam tropeços nesta versão italiana das biografias hollywoodianas.
Cem passos se referem à distância entre as casas de Gaetano Badalamenti (Tony Sperandeo) e Peppino Impastato (Luigi Lo Cascio). O primeiro é o conhecido chefe do crime organizado da região; o outro dedica a vida a expor a sujeira dos atos deste e outros criminosos. Próximo da presença do crime a ponto do próprio pai ser um conformista, Peppino entra com razões pessoais na luta contra a máfia numa época em que ninguém ousava levantar a voz. Chances extremamente desfavoráveis não desmotivam um grupo de jovens de desafiar um império corrupto bem estabelecido em seu trono.
Às vezes me pego pensando sobre os eventos que me trouxeram até onde estou — seja lá onde isso seja. Por exemplo, estaria sentado escrevendo a crítica de um filme italiano dos Anos 2000 por consequência direta das decisões que tomei? Foi uma corrente de escolhas, grandes e pequenas, que possibilitaram esta situação ou algo menos concreto? No primeiro cenário, havendo uma memória precisa o bastante para recordar exatamente o que aconteceu ao longo do caminho, supõe-se possível traçar eventos como causas e consequências sequenciais. O outro é um misto de coincidências, decisões nem sempre racionais e até um pouco de passividade perante mudanças inferidas pelo mundo externo. São formas diferentes de enxergar o mundo e impossíveis de serem validadas como corretas. Uma não depende da inexistência da outra para existir. É mais sensato apontá-las como complementares, cada uma com sua parcela de influência no trajeto de cada pessoa.
No cinema, isso se traduz mais ou menos nos modelos de roteiro chamados Arquitrama, Minitrama e Antitrama. Do mais causal para o menos, estes modelos caracterizam modos de contar uma história e, de certa forma, de representar a vida. Quando se trata de uma biografia, como “I Cento Passi”, existe o risco da narrativa pender demais no primeiro modelo e soar artificial na representação de anos e até décadas. Este longa sofre porque a vida não se resume a uma corrente racional de fatos. Neste caso, a causalidade é mais notável porque os maiores eventos da trama são apresentados sem sutileza alguma. O arco do personagem, que deveria ser uma qualidade subliminar da narrativa, fica exposto. Suas causas estão próximas demais das consequências para que o enredo seja percebido como uma sequência fluída de acontecimentos.
Em algumas situações, a proximidade entre eventos é aceitável e pode até ser benéfica, como um homem infiel sendo descoberto e perdendo a esposa subitamente. Se ele não esperava ser pego, a imediatez da consequência amplifica o efeito da surpresa. Acredito que dificilmente alguém pode restringir decisões importantes a poucas razões. Há quem faça escolhas levianamente, claro, mas me refiro às pessoas que seguiram suas paixões, agiram racionalmente e emocionalmente na busca de algo. Não é algo que se descreve de forma simples. Dizer numa biografia que Ayrton Senna tornou-se piloto simplesmente porque gostava de carros não seria satisfatório, assim como falar que as coisas na vida de Peppino Impastato acontecem por conta de razões pontuais não funciona bem — fazer isso mais de uma vez, menos ainda.
Isto não é dizer que “I Cento Passi” é ruim, que não haja engano. A presença deste problema não deve ser encarada como um Calcanhar de Aquiles devastador de méritos, é apenas um ponto que me chamou muito a atenção por estar tão próximo da parte interessante: a vida do protagonista. Por um lado, não posso dizer que concordo com as escolhas de Peppino Impastato. Acho que ele decidiu encarar os problemas de uma forma infeliz e um tanto improdutiva, mas isto não vem ao caso. Filmes não pedem para a audiência concordar com qualquer coisa, eles propõem que ela se envolva e enxergue a vida com outros olhos por um tempo. A tragédia funciona justamente porque me senti compelido a tomar uma posição em relação ao conteúdo da história, estive envolvido com seus personagens e eventos. Posso até achar que ativismo descerebrado não seja atraente ou efetivo, talvez até criticar quem faça isso na vida real, mas que méritos sejam dados porque me senti engajado. Já é muito mais longe do que obras medíocres chegam. Estas têm seus méritos resumidos à tentativa de alcançar isso, nunca chegando lá.
“I Cento Passi” tinha potencial para mais. Luigi Lo Cascio e Tony Sperandeo ambos extraem o melhor das boas idéias do roteiro. Roteiro e elenco trabalham em consonância para mostrar quem o protagonista é: o que ele faz e em quais situações demonstra isso. Em uma ótima cena que termina mal, por exemplo, um Peppino ainda garoto senta no colo do homem que o apadrinhou e guia o volante de seu carro, brincando de assustar as pessoas no lugar até ser forçado a frear pela presença de outro homem. Um homem representa o laço de carinho do menino por alguém da máfia, talvez o único; o outro, também mafioso, apresenta-se como um obstáculo. Inicialmente, a cena não parece nada demais, mas eventualmente revela-se como uma analogia explícita até demais. A causalidade se apresenta melhor na disposição de cenas. A justaposição de cenas individualmente boas produzindo um resultado questionável, o todo sendo mais que a soma das partes.
Algumas perguntas são facilmente respondidas: assisti a “I Cento Passi” porque minha professora de italiano passou o filme como trabalho. Explicar por que tirei algumas horas do dia para escrever sobre ele já é uma história mais longa, que envolveria as razões por que comecei este site e meu gosto pelo Cinema. Falta uma sensibilidade a esta diferença de grandeza e complexidade, a qual melhoraria muito o conto de um rapaz importante para a história social e política da Itália.