É bem comum ouvir alguém dizer que menos é mais, que com simplicidade vêm a compreensão clara e o sucesso. Acredito que o mesmo se aplica para as histórias sem um assunto direto ao ponto, aquelas sobre tudo e sobre nada. “História de Taipei” é um título apropriadíssimo para representar exatamente esta idéia. Não é um filme sobre a cidade ou sobre um contexto amplo, é um conto tão íntimo quanto poderia ser sem deixar de ter significados universais. Sem exaltações emotivas e acontecimentos ímpares, apenas o lado comum de vidas que já não têm o mesmo pique de antes. Vidas inertes no rescaldo de uma felicidade que já se foi.
Lung (Hsiao-Hsien Hou) trabalha num negócio têxtil, vende tecido para pagar as contas. Um dia, ele já foi um jogador de beisebol apaixonado pelo esporte, orgulhoso de quem ele era. Mas isso foi um dia. O orgulho já morreu faz tempo, sua vida agora é outra. Não há mais espaço para romance ou empolgação, nem mesmo em seu duradouro relacionamento com Chin (Chin Tsai). Eles estão juntos há mais tempo do que qualquer um dos dois faz questão de lembrar. Um faz parte da vida do outro como pedaço de uma rotina. Essa é sua história.
É difícil caracterizar exatamente do que “História de Taipei” se trata, ao mesmo tempo que é uma resposta simples. É a história de Lung e Chin, claro, mas o que isso quer dizer? Certamente não é um documentário ou uma dupla biografia que engloba suas histórias de vida. Aliás, história de vida é um escopo amplo demais para qualquer mídia. Este filme usa a história dos dois para explorar temas e evidenciar sentimentos subjacentes aos atos rotineiros e comuns vividos por eles. Abordar este longa pela parte literal certamente o tornará frustrante. Não há graça em presenciar conversas pouco empolgadas de gente que não queria estar onde está. Por sorte, explorar o que jaz debaixo da superfície não é nenhum esforço hercúleo, faz parte da experiência.
Não há como assistir “História de Taipei” sem tocar nesses pontos subliminares. Acredito que o verdadeiro esforço hercúleo seria não se deixar envolver com a obra. Ela é muito imersiva e contagiante para o espectador não apreciar seu conteúdo. Enquanto assistia, notei que este foi o único filme até então que não me deu sono. Não que os outros tenham alguma culpa nisso, pois esta semana têm sido intensa e de poucas horas de sono. Não obstante, estava me perguntando qual seria o motivo pelo qual estava tão vidrado. Esta não é uma obra focada em trama, com cenas que deixam a audiência querendo mais já no primeiro segundo depois dela acabar. Nem estava completamente empolgado pelos personagens, interessado pelas suas personalidades a ponto de querer vê-los na tela sempre. Era algo mais.
A relação entre Chin e Lung comunica muito mais do que enredo ou qualquer um dos dois individualmente. Ele, por um lado, chega a se assemelhar levemente com o Troy Maxson do recente “Fences“. Ambos vivem vidas que não correspondem aos sonhos que um dia tiveram, além de serem atormentados pela promessa de sucesso no beisebol em seus passados. Se as perspectivas seriam proveitosas, não há como saber. É exatamente essa incerteza que os atormenta, a possibilidade de talvez estar em outra vida. No caso de Lung, de fugir de um relacionamento em que os pólos estão desconectados. Chin, por outro lado, sente o mesmo, mas age diferente. Ambos querem mais do que têm. Não por ambição ou luxúria, mas por um sentimento genuíno de querer ser feliz. Mas a realidade mostra-se mais dura. A felicidade não é uma escolha arbitrária, nunca é quando um envolvimento emocional está carregado de tristeza. Antes fosse tão simples separar os feijões podres dos bons. Quando um relacionamento dá errado, a vida do indivíduo costuma se desestabilizar. E quanto maior o tamanho, maior a queda. Um namoro de anos como o dos protagonistas está num nível em que não há como retirar a parte ruim facilmente.
“História de Taipei” trata de uma situação inteiramente comum e humana: a dificuldade de desligar-se das coisas que não nos apetecem. O corpo humano funciona de forma que qualquer mudança, por mais positivas que sejam as perspectivas, sejam consideradas uma ameaça. É normal sentir certa resistência em momentos de tomar decisões grandes. O lado impressionante, contudo, não é este, e sim como os personagens saem da inércia apenas para inconscientemente perpetuar seus estados de miséria. Não há razão lógica para isso e nem deve ter, pois este é uma obra completamente sentimental. Se todos pensassem com a cabeça, seria um filme muito mais curto e completamente ausente de atrativos. Relacionamentos seriam colocados na balança, decisões conscientes sobre o futuro seriam tomadas e, logo, tudo se resolveria. Ninguém faria uma besteira porque sim ou fumaria um cigarro a mais porque já não faz mais diferença quantos foram fumados no dia. As coisas acontecem numa corrente de sentimentos inconscientes e dores não reconhecidas. É fácil se envolver, afinal todo mundo já sofreu sem saber direito o porquê; ou sabendo o motivo e fazendo o possível para tentar não acreditar nele.
A cereja do bolo é ver que, apesar da rotina e da banalidade dos eventos, existe estrutura por trás de tudo. “História de Taipei” começa sem deixar exatamente claro sobre o que se trata, então deixa pistas na sequência sobre a condição de seus protagonistas. Alguma coisa relacionada a beisebol deixa Lung inquieto. Por algum motivo, mencionar Tóquio incomoda Ching. Estes detalhes são jogados aqui e ali para serem resgatados mais além e desenvolvidos. Mencioná-los aqui não estraga a experiência, como pode-se pensar. Imprevisibilidade é uma característica do longa, portanto dificilmente se sabe onde eles vão aparecer. Além do mais, esta não é uma história de fatos, mas sobre o efeito que os fatos têm sobre os personagens. Sobre este ponto, eu poderia escrever 12 mil palavras sem me aproximar da experiência de ver os atores vivendo cada situação. Não há como objetivar a subjetividade, e este é um filme que trata justamente deste último.