“Enemy” é um daqueles filmes estranhos. O enredo, por si, é um apanhado de bizarrices com um final de quebrar a cabeça. Sem interpretações e teorias, fica difícil abraçar a história pelo que ela mostra. Alguns trechos simplesmente não descem como eventos palpáveis. São coisas estranhas, que só poderiam ser aceitas literalmente com muita suspensão de descrença. Mas isto não torna o resultado final ruim. Interpretação e abstração são essenciais para compreender os significados mais profundos desta obra de Denis Villeneuve. É um desafio às capacidades do espectador, sem dúvida, ainda que não seja uma proposta sem falhas.
Adam Bell (Jake Gyllenhaal) é um professor universitário de História. Introvertido e preso à rotina, ele segue a vida sem muita surpresa ou aventura. Até seu namoro com Mary (Mélanie Laurent) é um tanto sem sal, apenas uma parte de um ciclo de ir de casa ao trabalho e vice-versa. Mas isso muda quando Adam encontra num filme um ator exatamente igual a ele — das marcas de expressão à cor dos olhos. Sem saber o que fazer, ele alimenta uma obsessão doentia pela verdade sobre este outro homem.
O mistério e a interpretação de “Enemy” são elementos importantíssimos para a obra: o primeiro engaja o espectador, o outro dá significado a tudo. E, no entanto, nenhuma das duas se posiciona como o melhor que se tem para oferecer. Não é tanto a premissa de existirem dois caras iguais que impressiona, mas a execução dessa idéia. Em outras palavras, como Jake Gyllenhaal interpreta dois personagens de aparência igual e personalidades completamente opostas. Seria simples o bastante interpretar o mesmo personagem, apenas um papel e algumas cenas contracenando com si mesmo. O lado complexo cairia no colo dos editores. Se este fosse o caso, seria uma abordagem mais simples, além de um ponto forte a menos aqui. Sem dois Gyllenhaal, não teria a mesma graça.
De longe, o que mais gostei em “Enemy” foi a versatilidade do ator. Não quero dar a entender que as cenas foram gravadas conforme sua ordem no roteiro, mas não deixa de ser impressionante ver a mesma pessoa alternar interpretações tão díspares numa questão de momentos. Numa tomada, o travado professor de História; na próxima, uma personalidade ativa e ambiciosa. Um cara que se enrola para falar contra outro cuja mente é lotada de planos e idéias. Essas situações devem boa parte de seu sucesso ao roteiro. É ele quem evidencia esse contrates poderosíssimos quando fabrica confrontos entre os dois personagens. Demora um pouco para as coisas chegarem neste ponto, mas, felizmente, não deixam a desejar quando finalmente chegam. Nos outros momentos, o suspense se faz presente através das ramificações da ambiguidade — qualidade inerente quando se trata de identidades facilmente confundidas. Ele fortalece o desenvolvimento do mistério e traz um foco que não se baseia no porquê dessa duplicidade, e sim nas consequências dela. Não senti falta de uma explicação, pois sempre era direcionado a aguardar pelo que estava por vir.
Por outro lado, não posso dizer que me senti igualmente satisfeito com o lado abstrato da história, o subtexto que explica alguns dos eventos mais bizarros. Estes não têm nada a ver com a questão da identidade. Os porquês se referem a outras coisas. Isso se dá porque o grande surrealismo de “Enemy” é bem maior que duas pessoas iguais existirem. Por trás deste e outros elementos da história há um significado mais abrangente e ambicioso. É a ele que me refiro quando digo que não gostei tanto do que o filme teve para dizer. Ou melhor, meu problema é com a transmissão da mensagem, não com ela exatamente.
Não acho que seja meu lugar propor maneiras diferentes de lidar com essa questão. Posso apenas trazer outro filme que se sai melhor em ser aberto a interpretações e ter um subtexto fortíssimo: “Persona“, de Ingmar Bergman. Este é um ótimo exemplo de significados superando o lado objetivo das imagens sem serem mau apresentados. Existiam pistas na fotografia, na composição de cena, no figurino e, especialmente, na forma como os personagens se relacionam. “Enemy” não possui esses traços nem a sofisticação na elaboração desta abertura a interpretações. Acima de tudo, porque a fotografia é pobre num sentido estético e prático. As cenas são sempre amareladas e acinzentadas. Não vejo uma razão para que o espectro de cores seja limitado a estes tons e também não acredito que, se existe alguma, ela se aplique ao filme todo. Pois bem, Denis Villeneuve chegou a mencionar o assunto numa entrevista. De acordo com ele, o tom amarelo saiu de sua mente quando ele leu o livro, reflexo da poluição como característica da cidade na obra. Amarelo de fato sugere certa relação semântica com a sujeira, o lado asqueroso da vida; algo ligado com a poluição do ar numa cidade. Entretanto, o exagero toma conta e diminui o possível impacto de tal efeito. Para mim, o diretor apenas confirma que realmente não há uma boa razão por trás desta decisão artística. Sua intuição não foi funcional.
Felizmente, seus filmes subsequentes tiveram um olhar mais clínico sobre os visuais. Tanto “Sicario” como “Arrival” aproveitam a estética como complemento para histórias com significados e subliminaridades que variam a cada sequência, adaptando-a conforme necessário. “Enemy” se se dá muito bem pelo trabalho versátil e duplamente eficiente de Jake Gyllenhaal, além do fato da dualidade andar junto do suspense. Ao mesmo tempo, significados maiores não são trabalhados tão solidamente. Seu embasamento através da linguagem cinematográfica mostra-se carente. É visível que o resultado é aquém de seu potencial, porém ainda é uma experiência que merece ser conferida principalmente por seu elenco — incluindo Sarah Gadon e Mélanie Laurent como as duas coadjuvantes da trama.
1 comment
O filme é espetacular e cai no mesmo problema da obra de Tim Burton, planeta dos macacos, conforme meu comentário na análise e War for the Planet of Apes, ninguém entende o final. Sim, o final é um tapa na cara, e essa é a maior graça dele. Ele consegue te dar um tapa na cara igual fazia Stanlei Kubrick, com a diferença que Stanlei não tinha explicação. Enemy tem, e pra quem não entendeu é sobre um homem que tem problemas de relacionamento com mulheres, desde a mãe até as namoradas (mostradas como aranhas). Isso implica nos seus relacionamentos amorosos e ele não consegue se manter fiel a ninguém. Isso acaba causando a morte de uma namorada (esposa? não lembro, faz tempo) que descobre e a culpa vira sua assombração na forma dele mesmo. Mesmo no final, tendo acontecido de tudo pra ter um final feliz, ele mostra que é um grande filho da puta e continua infiel porque mulheres são apenas grandes monstros de oito patas pra ele. Pessoas não mudam, continuam sempre cometendo os mesmos erros.