Por um tempo achei que “Anatomy of a Murder” fosse um filme de Alfred Hitchcock. A história fala de assassinato, como o título sugere; o ator principal é um de seus principais parceiros, James Stewart; e o pôster tinha algo muito similar ao de “Vertigo”, outra obra de Hitchcock. Faz sentido, afinal ambos os pôsteres foram criados pelo mesmo artista, Saul Bass. Foi só depois que descobri que este longa foi dirigido por Otto Preminger, mais para o lado de “To Kill a Mockingbird” do que qualquer obra do Mestre do Suspense. Abrangente, ambicioso e com um elenco fantástico na construção de uma história que vai além da corte de justiça.
Aconteceu um assassinato numa cidade do interior de Michigan: o Tenente Manion (Ben Gazzara) atirou cinco vezes no dono de um bar que estuprou sua esposa. Acusado de assassinato em primeiro grau, o Tenente vai precisar de ajuda para não passar a vida na cadeia. Laura (Lee Remick), sua esposa, recorre a Paul “Polly” Biegler (James Stewart) para ajudá-la. Com os detalhes do caso um tanto confusos, Biegler questiona se vale a pena ajudar um possível criminoso a se livrar de punição. Foi insanidade temporária que levou Manion a matar ou um consciente ato vigilante?
Falar sobre a estrutura de um filme de tribunal parece ser redundante com tantas obras parecidas. Seguir o modelo de estabelecer personagens, conflito e depois resolver na corte é algo que não chama a atenção por si. “Anatomy of a Murder” segue exatamente esses passos e ainda consegue se destacar. Na falta de originalidade, cabe à execução chamar atenção. A primeira metade da história já introduz uma das coisas de que mais gostei no filme todo: o conflito moral do protagonista a respeito da sinceridade de seu cliente. É mais do que conhecer o plano de fundo do julgamento e esperar para ver quem ganha, certas questões continuam nebulosas depois que tudo se conclui. Até o fator pessoal da audiência está envolvido: o espectador acredita na honestidade do pedido de ajuda de Manion? Polly tem de encarar um dilema que vai além ter uma opinião distante dos eventos. Afinal de contas, ele está diretamente envolvido neles.
As atitudes de Laura, a esposa estuprada, são um tanto peculiares para alguém que sofreu um trauma gigante. Entre os extremos da esposa indefesa e da mulher imponente, Lee Remick apresenta uma performance espetacular. Sua personagem não é incapacitada pelo trauma nem busca incansavelmente a justiça, ela age de seu jeito curioso porque suas emoções a respeito do ocorrido não conseguem suprimir sua própria natureza. Ela não consegue se segurar: flerta tão facilmente quanto alguém respira e exala sensualidade por onde vai. Entrar num ambiente e sentar num sofá para esperar o advogado toma proporções afrodisíacas com sua presença. Já seu marido, age estranho para alguém que pode ficar o resto da vida numa cela. Ele não parece estar realmente empenhado em lutar pela sua liberdade. Ele não convence Polly sobre seu caráter e ela saltita por aí de óculos escuros, salto alto e seu cachorro no colo, aparentemente pouco preocupada com o destino do marido. Não é sempre que atores e roteiro estão em tanta sintonia como aqui. Ambos são essenciais na construção ambígua dos personagens, um dos aspectos responsáveis pelo sucesso de “Anatomy of a Murder”.
Por mais que o espectador tenha uma opinião formada sobre o Tenente e Laura, não é tão simples para o advogado. Ele ainda deve decidir se vale a pena defender esses indivíduos suspeitos em uma corte de justiça. Contudo, não há tempo para fazer uma análise profunda de caráter, apenas juntar peças incompletas e ver onde vai dar. “Anatomy of a Murder” trabalha essas questões com cuidado muito antes de colocar o pé dentro de uma corte. O resultado do julgamento é uma entidade distinta da veracidade dos fatos e a honestidade dos envolvidos. Isso cria uma profundidade inesperada para um filme que segue um modelo conhecido. Onde esperava-se exposição, preparação e introdução ao conflito, existem questões que permanecem relevantes para além do final do filme. Em nenhum momento a história estraga a ambiguidade em cima de seus personagens com explicações.
Num primeiro momento, Lee Remick e Ben Gazzara tomam as rédeas deste mistério. James Stewart adota uma posição mais passiva, apenas observa, investiga as intenções de seu cliente e descobre mais sobre o crime. O começo impressionou por apresentar mais que uma simples exposição de contexto, mas ainda restava a parte mais esperada de um drama de tribunal: o próprio tribunal. O tal aquecimento para o duelo de advogados foi muito melhor do que eu esperava, tão bom que tinha minhas dúvidas se o julgamento estaria à par. Antes de dar tempo de pensar que Lee Remick faz falta, James Stewart é reapresentado em uma nova posição: agora como o advogado em atividade, não mais em preparo. Gostei muito de ver o ator numa papel diferente de outros de sua carreira. Mais despojado, mais tranquilo e dando fortes indícios de improviso. Nada perto de ser relaxado, ele é tão bom porque constrói seu advogado como uma figura diferente do clássico orador assertivo e eficiente. Polly encara sua profissão como uma extensão de sua própria personalidade despreocupada, o que funciona curiosamente bem quando isso é usado nas argumentações através do humor e da informalidade. Além do mais, é um contraste interessante perto de outra interpretação incrível: George C. Scott como um promotor metódico, o clássico orador assertivo e eficiente. Melhor do que isso, apenas se ele fosse um pouco mais eficiente. A única coisa que me desagradou em “Anatomy of a Murder” é a postura bitolada da acusação, que se prende a uma mesma estratégia quando está está clara desde o começo. Talvez isso tenha sido escolhido como uma representação da arrogância da acusação, mas não senti que funcionou dessa forma.
Esperava que “Anatomy of a Murder” fosse ser um bom drama de tribunal com o embate verbal de juristas experientes embasando os grandes momentos. Minha surpresa foi ver que não só essa parte é boa, como todo o resto. Incríveis interpretações e uma inteligente escrita de personagem alimentam os conflitos de um julgamento que já era incrível antes mesmo de começar. Sem dúvida, é uma história de advogado que merece sua boa reputação.