O Rei dos Monstros volta pela 31ª vez. É de se pensar que a série teria perdido o fôlego após tanto tempo, mas a realidade é justamente o contrário. O segundo “Godzilla” americano estourou nas bilheterias em 2014 e os japoneses seguiram logo atrás com “Shin Gojira”, o mais novo filme da série e o de maior bilheteria japonesa até hoje. Pela primeira vez sem um homem numa fantasia de borracha, esta releitura também faz uso do realismo como uma ferramenta nova para reviver Godzilla em um contexto moderno. Sim, ainda há espaço para ele no cinema.
“Shin Gojira” não tem nenhuma ligação com os outros 28 filmes japoneses, ele é um novo começo na série. Diferente de apresentar um segundo Godzilla depois da morte do primeiro, como a Era Heisei e a Era Millenium fizeram, essa história desconsidera até mesmo o “Gojira” de 1954. Então quando tremores, vapor e outras esquisitices surgem na baía de Tóquio, nenhum personagem esperava que pudesse ser Godzilla. O Japão inteiro é colocado em alerta quando a presença de uma criatura gigante causa muitos danos em pouco tempo. Com a ameaça constante da destruição da cidade no ar, o destino dos cidadãos é colocado nas mãos de gente que não sabe o que a criatura é, muito menos o que fazer para detê-la.
Este é um filme que realmente me fez querer comentar sobre algumas partes de sua história. Me senti ainda mais tentado a desconsiderar que pudessem ser spoilers porque, bem, a história de Godzilla já é bem conhecida. Então lembrei que “Shin Gojira” é muito singular em alguns aspectos, embora siga a mesma premissa de um monstro gigante causando caos na cidade. Hideaki Anno traz em seu roteiro algumas mudanças nunca vistas antes nos 63 anos da série, elementos que certamente causam surpresa, mas nunca para pior. Gostaria de comentar sobre elas especificamente e quais novidades elas trazem ao clássico modelo de antes. No entanto, para evitar estragar qualquer surpresa digo apenas que elas fazem bem seu papel de estabelecer e embasar o conflito humano da história.
Hideaki Anno e Shinji Higuchi assumem a direção de “Shin Gojira”, o primeiro também escrevendo o roteiro e o último mais no encargo de todos os efeitos especiais. A história de Anno retoma algo que há muito tempo não era visto na série, talvez desde 1984 em “The Return of Godzilla“: o uso do monstro como catalisador de uma crítica social. Em 1954, a devastação nuclear foi o centro do filme, aqui é a estrutura do governo japonês. Não posso comentar até que ponto essa crítica é válida porque não conheço a política japonesa tão bem. Até cheguei a ler que o arco dos humanos nessa história, repleto de incompetência e formalidade acima de praticidade, é um reflexo do próprio governo diante do incidente de Fukushima. No entanto, por mais que seus esforços tenham sido medíocres no padrão do Japão, não consigo engolir tal crítica tão bem sabendo que a mediocridade deles ainda está muito acima do melhor que o governo brasileiro faria numa situação parecida. Vendo esses eventos sob um olhar crítico em relação a burocracia no geral, em contrapartida, já é outra história. Nesse sentido, não há como dizer que a história faz feio ao colocar em pauta como um governo baseado numa frágil estabilidade se dá mal quando o imprevisível aparece. É justamente essa imprevisibilidade que Godzilla representa aqui, de forma figurativa e literal — com traços excêntricos relacionados às singularidades mencionadas antes.
Shinji Higuchi assume o outro lado, e igualmente importante, de um filme do Godzilla: a ação e os efeitos especiais. Higuchi está no ramo de efeitos especiais há um bom tempo e trabalhou em produções diversas; de animes, como “Neon Genesis Evangelion”, a longas-metragens. Seu contato com a série Godzilla fica bem claro logo na primeira aparição do monstro, na qual ele aproveita o aspecto qualitativo dos visuais para apresentar o monstro aos poucos; a forma como ele aparece contra mostrá-lo por cada vez mais tempo. Melhor do que isso é como trazem o que “Giant Monsters All-Out Attack” — o melhor da série e um que teve o envolvimento de Higuchi — faz tão bem: explorar a destruição sem negligenciar noções de escala. Não critico o uso de miniaturas, longe disso, apenas elogio o fato de usarem elas em conjunto com tomadas que mostram os kaijus como criaturas realmente gigantescas. Nos olhos de uma câmera distante, a batalha pode não parecer tão titânica, mas do ponto de vista de quem vê tudo pela janela de casa é diferente. Quando o próprio Godzilla é apresentado em uma de suas encarnações mais poderosas, todos os acertos em escala e destruição são amplificados. “Shin Godzilla” tem facilmente as melhores, exageradamente maiores e mais eficientes demonstrações de poder bruto que a série já viu.
Minhas únicas críticas podem parecer pequenas em relação aos acertos aqui. A série nunca foi caracterizada por perfeccionismo técnico e altos custos de produção, então que impacto deslizes nessa parte teriam? Neste caso, eles se destacam mais. É uma característica da franquia intercalar as cenas de monstro com dramas humanos, principalmente se o molde for similar ao do original. Mas aqui sua presença parece ser um tanto excessiva, mais esmagadora quando presente do que por tomar muito tempo de tela. Realmente não há tão pouco Godzilla como na contraparte ocidental de 2014, mas senti que estas cenas foram mais desgastantes por serem mal dirigidas e mal editadas. Nem tem como comparar o que acontece dentro dos escritórios com o incrível trabalho de câmera e sua apresentação da imensidão da fera destruindo tudo. Nesses momentos, toda e qualquer noção de fluidez entre cortes desaparece. Tentam acelerar o ritmo ao diminuir a duração das tomadas sem se preocupar com a conexão de um quadro com o seguinte, prejudicando também a compreensão da narrativa e suas dezenas de personagens em funções e objetivos diversos. Pior, a trilha sonora, já sofrendo de uma inconsistência de qualidade, não é usada para amenizar essas transições, ela até chega a piorá-las quando a música de uma cena é interrompida sem mais. Não bastou usar músicas que parecem ter saído diretamente do estoque de alguma produtora, tinham que usá-las mal.
O contraste de competência técnica entre as cenas com o Rei dos Monstros e as outras com humanos é notável, certamente não faz favores à parte humana do enredo. Tirando esses deslizes técnicos, “Shin Gojira” se apresenta como uma visão diferente e renovada de um kaiju com mais de 60 anos de história. Melhor ainda, um dos melhores da série. Rumores sobre Godzilla morrendo e voltando como zumbi me deixaram inseguro em relação a competência dessa obra, mas nada disso foi verdade. Só espero que a dupla de diretores fique por mais alguns filmes, por algum motivo sinto que essa abordagem não funcionaria tão bem nas mãos de outros diretores.
2 comments
Gostei muito do filme (tenho inclusive a action figure de Shin Gojira na estante). É incrível como nenhuma crítica comenta o final – spoiler – sobre a cena da cauda, mais precisamente um close mostrando humanoides-zilla se desprendendo dela… é um baita gancho para uma continuação, apesar de nem imaginar pra onde a história iria depois disso…
Opa! Aqui no site tento evitar spoilers, por isso não comentei nada. Também achei bem curioso. Por mais WTF que possa ser, vi umas teorias de que tem tipo umas pessoas saindo da cauda e que elas são a próxima forma dele. Francamente não sei o que achar. Também não faço idéia de como continuar a história daí. Seria bizarro um filme do Godzilla sem ele.