O que é Cabíria? Até um tempo atrás, achava que era alguma cidade italiana. O nome parece apropriado e até se encaixa no título “Le Notti di Cabiria” — “As Noites de Cabiria”, em português. As noites da cidade. Então descobri que estava errado. Na verdade, Cabiria é o nome da personagem principal e, depois de assistir ao filme, tudo fez completo sentido. As noites de uma cidade podem ser hoje, amanhã ou qualquer noite, como “Night and the City” diz muito bem em sua introdução. Mas e as de uma pessoa? Essas são mais complexas, um dia nunca é como o outro.
Não na vida de Cabíria (Giulietta Masina), pelo menos. Tudo parece indicar que, independentemente do que acontece, a miséria sempre será predominante. Ela é uma prostituta. Seu cotidiano se resume a ocupar a parcela marginalizada da sociedade sem ter muito o que fazer a respeito disso. Mas Cabíria é diferente de suas colegas de sua profissão, seu sonho é encontrar amor nas ruas de uma Roma que prefere fingir que ela não existe. A vida cospe em seu rosto sem cerimônia, mas isso não a faz deixar de acreditar, por mais que ela se esforce para mostrar que não liga mais para eles.
É fácil olhar para a atuação de Giulietta Masina e pensar que este é outro filme antigo com atuações exageradas, amado pelo público saudosista quando deveria ser criticado por envelhecer mal. Em parte, dá para considerar essa linha de raciocínio. Não acho absurdo dizer que uma atuação forçada, quase caricata, deve ser reanalisada em outros tempos; ela ser mais aceita ou popular no passado não deve estabelecer imunidade a críticas. Mas o caso de “Le Notti di Cabiria” não é elegível. Sim, a personagem causa um certo choque logo no começo com seu comportamento constantemente e excessivamente errático, dando a entender que será um tipo de cartum. Todavia, essa atitude artificial abre espaço para a profundidade pedida por uma história sobre uma prostituta buscando amor. Se alguma dúvida surge sobre a performance de Masina, ela logo some.
Focar na atuação sensível de Giulietta Masina pode parecer uma negligência dos outros sucessos de “Le Notti di Cabiria”, afinal ele é a união de um roteiro cuidadosamente harmônico com sua protagonista, representado pelos contrastes de uma fotografia tão obscura quanto reluzente nos visuais e Nino Rota na música. É uma combinação e tanto, mas não poderia ser diferente: a atriz ainda é o instrumento do sucesso. Sua atuação é realmente estranha no começo, podendo sugerir uma idéia errada sobre o filme e sua performance quando é apenas uma forma incisiva de introduzir a personagem. Não seria mais compatível começar uma história de sonhos improváveis com melancolia? Sim, mais previsível e mais comum também.
Esta obra de Federico Fellini traça um caminho característico e até excêntrico — não menos eficiente — até chegar no que se espera de um filme com potencial dramático como esse. Cabíria se porta como alguém que encostou a cama na parede para sempre acordar com o pé esquerdo, eternamente incomodada por algo que ninguém sabe bem o que é. Uns a chamam de louca com uma boa dose de razão. De que outro jeito se chamaria alguém que insulta as mesmas pessoas que se preocupam com ela? Reprimida, frustrada, talvez. É só aos poucos que uma pessoa como ela, que já passou por tanto na vida, se abre para enfrentar um mundo que não se orgulha de tê-la.
De uma entonação cartunesca ao drama de uma mulher vulnerável, “Le Notti di Cabiria” faz um trabalho soberbo na representação de uma história que corresponde a todas as expectativas que eu tinha. Uma histérica, que maltrata os outros sem critério, esbarra nos cantos de Roma como alguém que procura algo sem saber se encontrará. É neste formato que o roteiro genialmente segue por ambientes desconectados e situações distantes sem perder-se no caminho. Igualmente genial, Giuletta Masina acompanha todas estas mudanças de lugar e clima trazendo a emoção apropriada a cada um desses momentos, nunca se destacando de forma que não seja intencional. Numa procissão religiosa cheia de pessoas imersas em sua fé, aos prantos e atropelando-se pela graça da Virgem Maria, Cabíria claramente está fora de lugar e expressa justamente isso. A maioria anseia fervorosamente por uma benção, mas eles agem como se isso fosse devido a eles; todos estão certos que foram bons cristãos, afinal de contas. Não Cabíria. Ela fala que está nervosa de se aproximar do altar. As consequências de uma pecadora em solo sagrado? Difícil. Seria uma resposta muito óbvia para um filme com tanta profundidade. Ela é provavelmente a única pessoa realmente boa ali. Enquanto muitos vão buscar o que consideram ser seu, ela coloca a mão na consciência e questiona a si própria se realmente merece qualquer simpatia divina. São momentos como esses que, aos poucos, destrincham a sensibilidade protegida pela histeria, a mulher por trás da prostituta.
É uma jornada que começa estranha, mas que chama a atenção e não demora para transformar choque em maravilha. O que uma prostituta pode esperar da vida? Dinheiro e o escárnio daqueles que reprovam suas decisões de vida. Cabíria, no entanto, encontra apenas metade disso. A realidade é mais sórdida e a concorrência mais atraente. Comovente, sensível e sublime em desconstruir uma personagem crucificada pelos próprios sonhos, “Le Notti di Cabiria” chega a ir além. É até doloroso por provavelmente não ser a primeira vez que algo tão desconcertante acontece com ela.