Embora aqui no Brasil não tenha sido tão popular, o julgamento de O.J. Simpson foi um dos maiores eventos da história recente dos Estados Unidos. Foi mais do que uma celebridade descendo ao plano dos meros mortais e enfrentando a justiça, o caso cresceu demais e muito rápido. Antes de muitos se tocarem do que tinha acontecido, já havia gente morta, gente querendo se matar, outros usando o caos para ganhar fama e até torcida para o resultado do processo. O que deveria ser um julgamento como qualquer outro, orientado por provas e evidências, logo se tornou um evento falado por todos e transmitido em rede nacional quase constantemente. Tendo um cão naquela briga ou não, era impossível fugir de notícias tratadas quase como entretenimento. Este foi um julgamento com todas as reviravoltas de um filme de advogado, só que na vida real; ligar a televisão era ser apresentado a um tribunal totalmente novo, nunca um momento de tédio, e é exatamente isso que “The People v. O.J. Simpson” apresenta.
Um dos grandes destaques da televisão americana nesse último ano, a obra venceu 2 Globos de Ouro e 9 Emmys entre outras diversas premiações. Esta é a primeira temporada de “American Crime Story”, uma série sobre os maiores crimes dos Estados Unidos; mas como cada temporada é centrada em um crime diferente, vou tratar cada uma como um conjunto isolado, mais ou menos como uma minissérie. O foco aqui é o assassinato de Nicolle Brown e Ronald L. Goldman, ocorrido no dia 12 de Junho de 1994. O acusado? Orenthal James Simpson (Cuba Gooding Jr.), grande jogador de futebol americano e celebridade americana. Muita coisa aponta ele como culpado, mas este caso é tudo menos simples, muitos outros fatores mudam as perspectivas quando etnia, status social e o poder da argumentação entram em jogo.
Novamente a televisão se mostra como um veículo mais completo que o cinema, especialmente nesses últimos meses tão focados em diversidade étnica, oportunidade para todos igualmente e liberdades sociais. Claro, de certa forma é um tanto injusto querer comparar as 2 horas de um longa-metragem com os 10 episódios de mais ou menos 50 minutos de “The People v. O.J. Simpson”, mas eu sinto que o caminho escolhido por esta obra já se mostra muito diferente do que os filmes do Oscar, por exemplo, independentemente da duração. Enquanto estes longas contam histórias sobre segregação racial e preconceito, abrindo oportunidade para atores cujas etnias foram negligenciadas em anos anteriores, este seriado aborda a cor da pele como algo muito mais complexo do que ter uma indicação no Oscar. Usando a razão, nada deveria ter sido muito extraordinário. Existiam provas colocando O.J. na cena do crime e precedentes que não favoreciam sua inocência. Seu discurso era confuso e não estabelecia um álibi razoável. Qual foi a saída então? Contratar a melhor equipe de advogados da América, pessoas que não teriam receio de usar qualquer coisa para a defesa do réu. E foi exatamente isso que fizeram. O trajeto dessa equipe não conta apenas uma grande história, mostra também os dois lados de usar a cor da pele como argumento. Podem haver dilemas sensatos, mas isso não quer dizer que todos são assim.
Para um público que não teve um contato tão próximo com a história — provavelmente o caso de quem não mora nos Estados Unidos — esta obra apresenta um material valioso, seja em termos de simples informação, em trazer uma singular linha de argumentação ou como entretenimento de primeira. Saber o resultado do processo é uma questão de acessar a Wikipédia, mas vou evitar comentários sobre a conclusão de tudo a fim de evitar possíveis spoilers, afinal o caso não foi tão amplamente divulgado por aqui. “The People v. O.J. Simpson” não assume que o espectador deveria saber de alguma coisa de antemão. A temporada é estruturada de forma que os eventos sejam compreendidos de forma completa, ou seja, aborda o que aconteceu antes mesmo do crime acontecer. As primeiras cenas introduzem o contexto daquela época: revoltas acerca do espancamento de um taxista negro pelas mãos da polícia. Assim o dilema racial é inflamado a partir de um evento concreto — uma instituição do governo violentando os cidadãos que deveria proteger — e suas implicações se estendem por anos, chegando ao ápice quando uma pessoa negra de proeminência é colocada contra a parede pela justiça. Seria outro caso do governo vitimizando negros ou um assassinato como qualquer outro?
“The People v. O.J. Simpson” aproveita muito bem os benefícios de sua duração para não limitar a dimensão alcançada pelo caso. Antes fosse apenas uma celebridade sendo presa, como não é tão incomum nos Estados Unidos, o caso se tornou o símbolo de muitos conflitos sociais daquela época e o seriado não negligencia isso de forma alguma. Pode até não ser o apanhado mais completo sobre este fenômeno judicial — há ainda um documentário com quase 8h de duração, indicado ao Oscar desse ano — mas fiquei muito satisfeito com o que fizeram aqui, tanto pelo relato do julgamento quanto pela exposição de suas ramificações. O primeiro episódio, por exemplo, introduz o contexto histórico e desenvolve o próprio O.J. como alguém que poderia ter cometido o crime — considerando seu humor explosivo e seu discurso duvidoso — e também como alguém inocente — se suas tendências suicidas e sua demonstração real de emoção forem levadas em conta. A figura central vai além de um réu famoso para alguém desbalanceado emocionalmente, mas qual seria a razão por trás de tanta emoção? Culpa, luto ou a pressão da nação inteira? Tendo definido seu protagonista como uma fonte de dúvida, o resto do processo ser o avatar da instabilidade é apenas reflexo da pessoa sendo julgada. E o que a defesa faz? Se aproveita dessa insegurança para mostrar que talvez exista um lado negligenciado pelos que orientam pelas provas.
Mas o seriado não se prende à essa alternativa trazida, ele está tão a favor da defesa quanto da acusação. Em outras palavras, ele apresenta a argumentação racial como um caminho novo ao mesmo tempo que defende a corte como o lugar onde provas devem prevalecer acima de qualquer outra coisa. Só que ir além delas não tem consequências meramente dentro do tribunal, isso desperta um fenômeno grande demais para ser sobre apenas um indivíduo. Do dia para a noite, tudo fica maior que O.J. Simpson. Agora as vidas pessoais de todos os envolvidos são uma notícia em potencial, com esqueletos do passado surgindo aos montes. Não demora para que os espertos tirem vantagem disso. A disputa sai do tribunal para as ruas, vencer torna-se uma questão de quem tem mais recursos e idéias criativas — e muitas vezes absurdas — para tirar a credibilidade dos envolvidos. O discurso de uma testemunha pode ser forte, mas o júri pode pensar o contrário se for revelado que suas atitudes fora da corte não são condizentes com as palavras. A história de “The People v. O.J. Simpson” impressiona porque vai além da magia verbal de advogados que praticaram a vida inteira discursos com palavras afiadas, ele mostra o lado não tão burocrático da lei ao expor seus personagens jogando sujo, além de não esconder o resultado dessas atitudes. Mais do que isso, um trabalho de câmera proativo está sempre a par das tensões dentro da corte. Seus movimentos rápidos conduzem a atenção para o que deve ser visto sem demora, assim como se beneficiam de uma direção criativa. Quando uma discussão parece que não poderia ficar mais descontrolada, a tela muda para o formato quadradinho de uma TV, lembrando que, além de ser surpreendente ver alguns absurdos num julgamento, a nação inteira estava assistindo.
Por mais que possa ser fácil identificar dois lados claramente opostos nesse dilema — defesa e acusação, América Branca e América Negra — não dá para limitá-los à sua função mais óbvia. Há quem considere o caso como um catalisador da fama, os que acompanham o processo todo como se fosse a final da NBA e aqueles que querem vencer acima de tudo. Contudo, são seres humanos que estão em tribunal. A chamada acusação é composta por pessoas com sentimentos, motivações e histórias diversas. Quando o processo cresce o bastante para interferir em suas vidas pessoais, é apenas louvável que “The People v. O.J. Simpson” valorize esse lado individual dos personagens e dê oportunidade para seus atores brilharem no processo. Entre o elenco de estrelas, creio que não seja o único a achar que Sarah Paulson brilha ainda mais forte que outros atores incríveis, como Courtney B. Vance interpretando o advogado-chefe da defesa ou o próprio Cuba Gooding Jr. trazendo um lado vulnerável do réu. Paulson ostenta o mérito de ter tanta presença de cena no tribunal quanto fora dele. Sentada em sua bancada, ela defende seu ponto de vista, racional e orientado por fatos, com a confiança de alguém que nunca teve tanta convicção da verdade antes. É o bastante para vencer um caso? Não há como dizer, mas é assim que ela vive sua vida pessoal também. É impressionante como a vida exige tanto de alguém que só deseja as coisas no lugar. Ela só quer não precisar fumar tantos cigarros, aproveitar a companhia de seus filhos e ver a justiça prevalecer. É uma missão justa, mas incrivelmente dificultada por todas os detalhes do julgamento. Melhor do que é isso é ver que o roteiro não ignora esse seguimento e Sarah Paulson não deixa a desejar na representação dele.
Finalmente, “The People v. O.J. Simpson” apresenta um grande lado alternativo para o que era tido como fato e toda a força que ele tem. Dizer que uma suposta tendência racista da polícia interferiu na investigação pode ser uma boa tática, mas ela é ética? Não é porque levantar polêmicas raciais funciona que faz deste o caminho correto; por mais que o seriado exponha seu impacto, nem sempre é com um olhar de aprovação. A narrativa não favorece nenhuma corrente de pensamento ou veredito, até porque o caso até hoje não foi completamente respondido. Existem evidências comprometedoras, mas ainda há um espaço precisamente no tamanho certo para criar o benefício da dúvida. Nos Anos 90, os Estados Unidos se dividiram entre os que consideravam O.J. culpado e os que o inocentavam; hoje, sem questões 100% respondidas, não há como saber o que aconteceu realmente. Se nada pode ser provado, então nada mais justo que mostrar onde cada lado acerta ou erra. Mais do que qualquer coisa, esse impasse oferece um ponto de vista muito atual do que se vê por aí. Ninguém é desconhecido do poder de uma polêmica racial, mas até quem ponto é válido usá-la como argumento? De todas as coisas ditas, esta série sugere que talvez um tribunal não seja o melhor lugar para trazer algo desse tipo.
Se todas as temporadas mantiverem o alto nível estabelecido por “The People v. O.J. Simpson”, creio que “American Crime Story” tem potencial de ser uma da melhores séries de todos os tempos. Praticamente tudo aqui é realizado com maestria. O elenco conta com atores mais que competentes, um bônus para personagens já bem escritos; e além disso, o roteiro não deixa sua estrutura pontual, mas eficaz, passar despercebida. Cada episódio foca em um lado diferente do caso sem nunca deixar este em segundo plano. Todos levam o julgamento adiante, ao passo que um foca na vida pessoal da promotora, outro nas tensões sofridas pelo júri e assim por diante. Sempre há algo novo a se explorar e, se houver verdade quando dizem que este caso foi o embrião de todas as discussões atuais, então imagino que esta minissérie não seja mais completa ou menos que outras, mas que talvez dê atenção para alguns focos que talvez não sejam abordados por outras obras. Para mim, foi esclarecedor, informativo e definitivamente trouxe algo novo à mesa diante de tantos longas capitalizando em cima da polêmica étnica.