Por mais que “Lion” tenha entrado na leva de filmes étnicos junto com “Fences” e “Moonlight“, fica bem claro que ele é o menos preocupado com estabelecer um argumento sobre a questão racial. Nenhum deles comenta a situação de Hollywood diretamente, como era de se esperar, mas de um jeito ou de outro, mais sutilmente ou não, vários usam a segregação racial do contexto de suas histórias como um comentário sobre a falta de diversidade entre os indicados. Não é o caso dessa história sobre o contraste entre duas realidades bem opostas, mas igualmente importantes na vida de uma pessoa.
O jovem Saroo (Sunny Pawar) vive uma vida simples no interior da Índia com sua mãe e seus irmãos. Todos os dias eles saem de casa para conseguir os trocados que colocam o pão na mesa todos os dias. Ainda que não seja uma vida fácil, é o que eles tem. Mas um dia Saroo vai trabalhar com seu irmão e acaba se perdendo dele durante a noite, terminando a milhares de quilômetros de casa nas ruas de Calcutá. Mais de 20 anos depois, um Saroo (Dev Patel) crescido, agora vivendo em outro país, inesperadamente lembra de seu passado e decide que não é tarde demais para buscá-lo.
Num geral, dá para enxergar como “Lion” facilmente poderia ter sido um documentário: é uma história real, passa um bom tempo explorando o contexto social dos envolvidos e até tem um certo caráter informativo. O final, em especial, traz a clássica ponte entre os eventos dramatizados e o que aconteceu de verdade — como de praxe dos filmes do Oscar — com um teor muito mais para o lado dos documentários. Ele usa a história contada como um caso entre milhares de outros similares, que passam despercebidos e com certeza não recebem o mesmo tratamento que Hollywood deu a esta produção, por exemplo. Isso mostra que, de todas as coisas favorecidas aqui, há um destaque para a história e sua importância verdadeira: ser mais que uma isca para o Oscar e apresentar um argumento relevante. Mais relevante que comentar sobre a diversidade de uma cerimônia que deveria prezar pela qualidade acima da diversidade, ao menos.
Mas para todos os benefícios dessa empreitada documental, há outros detalhes não tão favoráveis para a narrativa. Por um lado, é muito interessante ver que “Lion” dedica bastante tempo ao período que Saroo passa na Índia, mostrando como a vida dele era diferente, antes de qualquer coisa. É um choque de realidade ver uma criança pequena carregando pedras para ter um copo de leite no fim do dia, sem enxergar a gravidade de sua própria condição. Essa segunda parte fica a cargo do espectador quando este é introduzido àquele mundo, tendo a oportunidade de comparar aquela realidade com a outra na qual ela se transforma. Saroo sai da miséria das ruas de Calcutá para uma casa incomparavelmente mais sofisticada na Austrália, uma mudança que não deixa de ser uma referência para a audiência se conectar mais com a história. Ver o protagonista numa vida mais parecida com a do espectador certamente estabelece uma ponte mais claramente. É um paralelo informativo e chocante, traz um argumento relevante, mas não é exatamente o melhor exemplo de uma narrativa instigante. Se o título for usado como referência, então, é ainda mais questionável quanto focam nas ruas da Índia. Foi tanto tempo indo de uma situação deplorável para outra que cheguei a ponderar sobre quão importante a tal jornada para casa realmente seria.
Outro ponto não tão bem executado aqui é a transição entre momentos, seja entre a primeira parte na Índia e a outra na Austrália ou entre os estados emocionais do protagonista num segundo momento. Saltar mais de 20 anos numa narrativa é uma jogada que dificilmente fica fluída, ainda que seja possível. “Lion” escolhe o jeito mais direto e simplesmente corta entre os dois momentos, mas não é esse o centro do problema. Dedicam muito tempo à infância de Saroo, um trecho que sofre com um ritmo por vezes lento demais, e quando finalmente passam para sua vida adulta, o processo todo acontece rápido demais. É uma incompatibilidade de ritmo e de profundidade, especialmente quando o protagonista tem uma transição muito abrupta entre sentimentos, prejudicando seu desenvolvimento no processo. De uma hora para outra ele vai de alguém confortável com sua condição para outra que usa sua obsessão pelo passado como o alimento de seu ceticismo sobre a vida. É uma transição mal polida, mas que é finalmente concluída da melhor maneira que poderia ter sido. O final é um grande fator do sucesso aqui, pois é ele quem faz todo esse trajeto nem sempre suave valer a pena. Por mais que o espectador não tenha tido tempo de sintonizar com as mudanças bruscas de Saroo, é muito difícil não se sentir genuinamente feliz e tocado pela conclusão de toda aquela jornada. Apesar de previsível antes mesmo de assistir ao filme, devo dizer que o final é maior do que simplesmente chegar no ponto esperado desde o começo, ele é um tipo de reencontro do espectador com aquele mundo ao qual ele foi introduzido lá no início distante do filme. É um dos prazeres mais sutis, mas não menos válidos oferecidos aqui.
Mesmo não sendo o melhor filme que vi desta temporada de Oscar, posso dizer que “Lion” foi um dos que me surpreendeu. Primeiro de uma forma mista, pois não esperava tanto foco na parte da Índia ou que ela fosse tão devagar em certos pontos; depois por ver que o final é realmente o coração da obra como um todo. Certamente tinha potencial de ser uma grande decepção se a conclusão não fosse a par do esperado, mas este não foi o caso.
2 comments
“deplorável para outra que cheguei a ponderar sobre quão importante a tal jornada para casa realmente seria.”
Era o laço familiar, cara. Acho que principalmente o irmão dele. Arredonde pra 80 agora que sabe isso.
E falta eu ver o Moonlight mas achei que o Dev entregou a melhor atuação dentre os coadjuvantes, nao concorda ?
Mahershala Ali e o Dev Patel estão ótimos, mas acho que eu daria a estatueta pro Jeff Bridges. De todas as coisas boas do “Hell or High Water”, ele é a melhor, certeza. Ou pro Michael Shannon, o personagem dele é muito bem escrito e igualmente bem atuado. Tirando o Lucas Hedges, acho que todos tão merecendo.