O Oscar 2016 teve um destaque extra além de todos os filmes indicados e premiados: reclamaram pelo segundo ano consecutivo da falta de diversidade nos indicados. Então nasceu a hashtag “#OscarsSoWhite” e um novo tema para discussão além de todos as polêmicas envolvendo a maior premiação de Cinema do mundo. Não era só uma questão de qual obra merecia uma indicação ou qual foi injustiçado, diversidade se tornou algo a se considerar na hora de produzir novos trabalhos. Não é de se surpreender que Hollywood enxergou uma nova forma de vender ingressos: abordando um assunto polêmico diretamente. Felizmente, “Hidden Figures” é mais que o produto do oportunismo, é um filme que faz tanto pelas questões sociais quanto faz pelo bem de uma boa história.
1961 foi um ano agitado nos Estados Unidos. A Corrida Espacial estava no ar e a Guerra Fria dava o toque de competição que faltava para criar uma meta nacional. A febre era tanta que a nação quase esquecia da segregação racial vigente. No centro de todo o patriotismo, ninguém menos que três mulheres negras se vêem envolvidas no maior projeto do país e de suas vidas: enviar o homem ao espaço e trazê-lo de volta com segurança.
A arte é um agente que molda o mundo ao seu redor e por ele é moldada. É uma relação íntima demais para ser de mão única, como acontece com cultura e sociedade: cultura define sociedade ou a sociedade define a cultura? “Hidden Figures”, assim como “Moonlight” e “Lion”, estão presentes nesse Oscar em parte por causa de toda a polêmica envolvendo a falta de diversidade étnica entre os indicados dos anos passados. Não como uma cota que os colocou ali simplesmente por causa do protesto alheio, mas são exemplos de produções que se beneficiaram de produtores que viram oportunidades de capitalizar num assunto popular. Muitos reclamaram e Hollywood se mostrou mais do que disposta a satisfazer demandas que podem encher seus bolsos. Felizmente, a história de três mulheres extraordinárias foi um acerto e tanto por si, pouco importa se foi em resposta a uma polêmica ou não.
Penso nisso porque há tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo na história que mal dá para pensar que a função de “Hidden Figures” seria apenas exaltar as conquistas de três mulheres negras. Esse não é um filme exibicionista, muito menos um que está ali para vender descaradamente um argumento de cunho social. O principal compromisso é para com a arte, nem que isso signifique alterar os fatos históricos para que estes funcionem melhor dentro de um roteiro. Alguns eventos aconteceram nos Anos 50, outros foram mudados para incrementar o drama — para bem e para mal. Se isso diz algo, é que queriam mais contar uma boa história do que focar em questões sociais, as quais não são deixadas de fora por isso.
Manipular a cronologia faz bem e mal ao roteiro. Felizmente, muito mais bem, pois é sobrepondo uma história em cima da outra, um tema ou um arco sobre outro que “Hidden Figures” encontra o sucesso. Os Anos 60 foram palco de movimentos como a ascensão dos hippies, a luta pelos direitos civis e a Guerra Fria. Tudo ao mesmo tempo. Embora não encapsule todos, pois não é essa a função deste longa, “Hidden Figures” escolhe pontualmente quais funcionariam bem numa mesma história. “Selma“, de 2014, focou em seu líder, Martin Luther King Jr., e no maior protesto do movimento dos Direitos Civis. Funcionou como um cabo de guerra entre dois lados, justiça e injustiça, enquanto aqui existem mais de duas pontas sendo puxadas. Três mulheres importantes são exploradas em paralelo, suas histórias encarregadas de martelar os temas sociais como parte do desenvolvimento delas, nunca como o principal foco narrativo. Elas são mulheres inteligentes e, de algum jeito, são marginalizadas por isso; devem lidar com várias regras patéticas da segregação racial; estão em plena Guerra Fria e ainda se envolvem num projeto de interesse nacional. Só um roteiro bem estruturado conseguiria agrupar tanta coisa numa mesma narrativa e, nesse quesito, não deixam a desejar.
É através das histórias do trio principal que o espectador conhece mais sobre os dilemas enfrentados diariamente. Os temas servem os personagens, não o contrário. Seria fácil e superficial o bastante pensar num lema e escrever personagens para se encaixarem naqueles moldes, cada um cumpriria sua função estritamente e a mensagem seria passada. É vendo uma mulher capacitada entrar na justiça para poder trabalhar como engenheira que pode-se Ver como a posição da mulher no mercado de trabalho era complexa. Outra faz o trabalho de uma supervisora e, naturalmente, quer cargo e salário compatíveis com as atividades que já exerce, mas só escuta que as coisas não funcionam bem assim. Não funcionam para quem? Para quem deve andar 800m para ir ao banheiro? As três personagens, todas destacando-se pelo trabalho impressionante das atrizes por trás delas, tentam avançar na vida como qualquer outra pessoa e a parte mais interessante é ver como elas dão um jeito de conseguir isso. Katherine Goble (Taraji P. Henson), prefere ficar na dela e só abre a boca quando acha pertinente; Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) tenta usar palavras bem colocadas e argumentação concisa para conseguir o que quer; diferente de Mary Jackson (Janelle Monáe) e sua impetuosidade frente aos absurdos que enfrente. Personalidades bem diferentes lidam com um preconceito bem enraizado nos outros, na atuação do resto do elenco. Uma presença subliminar, às vezes também aparecendo mais explicitamente, concentrado em alguns personagens que acabam sofrendo da mesma superficialidade de cumprir funções estritas. De qualquer forma, sempre acompanhando e tentando minar o sucesso inevitável de pessoas tão brilhantes.
Os deslizes de “Hidden Figures” não têm nada a ver com mostrar eventos de 1953 em 1961, isso fortalece a narrativa. Apresentar trajetos diferentes desenvolve gradativamente o sub-texto social ao combinar as várias dificuldades num mesmo apanhado. O problema é quando não confiam no contexto que estão construindo. Uma sala inteira reagindo como pré-adolescentes diante de uma modelo passa a mensagem muito bem para não precisar de um personagem escrito apenas para opor uma das protagonistas. O mesmo pode ser dito da trilha sonora, que não complementa os sentimentos na tela, mas os deixa expostos demais e, consequentemente, os prejudica. Ao menos nada disso impede que não uma, mas três grandes histórias sejam contadas de forma que encapsule os méritos daquelas mulheres e todas as dificuldades de um tempo turbulento.