“Hacksaw Ridge” pode ser um pouco traiçoeiro. Algumas fotos e o próprio pôster sugerem um filme de guerra nos moldes de clássicos como “O Resgate do Soldado Ryan”, que coloca os soldados em ação e deixa o drama do conflito falar por si. Então vem a sinopse e muda um tanto essa noção. Tudo começa com o fato da história focar num objetor de consciência, alguém que jurou nunca encostar numa arma em toda sua vida. Como diabos isso funciona num filme de guerra? Mil idéias pouco atrativas surgem até que o produto final mostra-se uma abordagem surpreendentemente única dessa premissa sem sal.
Desmond Doss (Andrew Garfield) decide se alistar junto com as hordas de jovens motivados a defender a honra de seu país, mesmo contra os protestos de seu pai, veterano da Grande Guerra. O problema é que ele não entrou com intenções de seguir ordens como todo mundo, seu plano é não abdicar de seus valores pelos interesses da nação. Sua missão? Se tornar um médico de campo e demonstrar sua valor salvando o maior número de vidas em vez de tirá-las como todos.
Para entender como “Hacksaw Ridge” funciona, basta lembrar do clássico “Nascido para Matar” de Stanley Kubrick e sua polêmica divisão em duas partes: quartel e guerra. Uma popular opinião dita que o longa deixa a desejar por sua primeira parte ser muito superior à outra parte que chamam de filme genérico de guerra. Esta obra de Mel Gibson — apenas como diretor aqui — se divide da mesma forma ao estabelecer a vida de Desmond Doss na cidade e dentro do quartel antes de mostrar qualquer tipo de ação. A diferença é que aqui invertem as coisas: a melhor parte definitivamente é quando os soldados rastejam por crateras de artilharia feitas da pior combinação de cadáveres, água e lama. Nem por isso devo tirar os méritos da primeira parte, no entanto. Ver Desmond em sua cidade natal e depois no quartel — com direito ao sargento abusivo e tudo — não faz competição justa para Mel Gibson no auge de carnificina desenfreada, mas é muito importante para tudo que acontece durante o caos do conflito.
Os valores do protagonista são estabelecidos neste primeiro momento: quem ele é qual sua motivação para fazer as coisas que faz. Seria a oportunidade perfeita para Andrew Garfield mostrar seu valor como um ator e justificar sua indicação ao Oscar, desenvolver a personalidade que em breve ele teria de reprimir no campo de batalha. Quanto a isso, fiquei surpreso com ele e outros membros do elenco. Muitos pareciam más escolhas para uma produção de alto nível como essa e acabam provando minhas expectativas erradas. Garfield supera a impressão ruim deixada pelos filmes da série “Espetacular Homem-Aranha” com uma interpretação carismática, sem tentar dar uma mordida maior que sua boca. Acredito que ele reconhece suas limitações como ator para não se aventurar a encarar cenas mais dramáticas de um jeito que ele não se daria tão bem. Seus esforços têm seus melhores momentos quando se manifestam pelas ações. ao contrário das emoções e dos diálogos. O resultado é novamente um fortalecimento da segunda parte do filme, que obviamente exige uma interpretação mais física que teatral e extrai o melhor de Garfield. Ele, assim como Vince Vaughn, merecem atenção por saírem de seus estereótipos negativos e mais ainda por fazerem a primeira parte de “Hacksaw Ridge” funcionar, ainda assim não chegando no mesmo patamar dos outros atores indicados. Talvez Andrew Garfield não ganhe o Oscar ou mereça sua indicação, mas ele se sai bem ao estabelece seu personagem e dar base para tudo o que acontece na segunda, e superior, parte deste longa.
Sem saber o que motiva Desmond Doss a ser o teimoso que vai para a guerra sem querer matar ninguém, a segunda parte ainda teria todos os benefícios da ação bem dirigida e da encenação eficiente das cenas de combate. Mesmo assim, faltaria algo, o subtexto por trás de um conflito que todos já conhecem o fim. A primeira metade define como serão as regras dali pra frente, usando principalmente a noção de contrastes para potencializar o drama ainda por vir. Doss é como uma ovelha negra entre homens que estão ali para seguir ordens sem contestar e logo se torna o elemento estranho do lugar, hostilizado por superiores para que peça dispensa do serviço feito para homens de verdade. Então a virtude que dificultou tanto a vida de Desmond — além de ser o valor definitivo da primeira parte de “Hacksaw Ridge — é colocado de frente com todos os horrores da guerra sem um traço de suavização.
O fato de Mel Gibson ter se destacado no passado como diretor não é novidade, se não pelo talento e os bons filmes que surgiram, então pelas demonstrações de violência sem restrições. Num filme de guerra como “Hacksaw Ridge”, isso funciona especialmente bem. Pelo uso pouco sutil da violência, mas eficiente, Gibson coloca ao teste os supostos homens de verdade. Suas convicções, discursos e aparências de valentões pouco valem contra ninhos de metralhadora e ataques de artilharia. Então o protagonista, até então limitado e definido apenas pelo seu discurso, entra em ação como alguém que faz a diferença naquele ambiente de morte e devastação. Desmond Doss finalmente mostra seu valor como um personagem que se desenvolve por suas ações enquanto alguns colegas morrem apenas com discursos heróicos em suas bocas. Os terrores da guerra são acompanhados de sequências de batalha que não pecam no entretenimento pelo protagonista ser um pacifista — até porque ele não é destaque coonstante — elas só têm a ganhar quando toda a violência ganha significado com sua presença. Quando ratos comendo cadáveres degolados são encontrados com frequência, alguém contra a perpetuação dessas coisas se faz mais do que necessário. Ver alguém sobreviver nesse pesadelo já constitui um desafio interessante e um diferencial bem vindo tanto para um filme histórico como para um do gênero Guerra.
Podendo ser comparado ao clássico “Nascido para Matar” pelo menos no formato, acredito que não vai ser incomum ver mais gente se incomodando com a divergência de qualidade entre a guerra e o resto do filme. Não que mostrar o protagonista em sua cidade e no quartel não seja importante, é elementar, mas não há como comparar. A diferença entre as partes é evidente e fere a experiência no longo prazo. Como muito não é aproveitado, talvez abraçar a oportunidade de deixar a narrativa mais direta fosse melhor negócio. Felizmente, para os pontos negativos há sempre uso da violência com propósito e cenas caóticas perfeitamente dirigidas, que associam ação coerente com estética num resultado muito satisfatório. Dificilmente levará muitos prêmios, mas pelo menos mostra a Academia valorizando o talento de Mel Gibson apesar de todas as polêmicas sobre ele.