Uma história boa não tem limites. Essa é uma verdade pouco questionada, mas também é uma afirmação tão vaga quanto poderia ser. O tal limite quer dizer o que? Duração, impacto dramático, potencial de empatia? Nas mãos de um contador de histórias habilidoso — que pode ser um avô nostálgico ou um diretor de cinema —uma boa história pode durar horas e não cansar quem escuta. “The Killers” é a prova viva disso quando adapta um conto de Ernest Hemingway, expandindo-o além de suas quase 3000 palavras em um Noir marcante. Por sua qualidade, por sua trama e estrutura complexas, que transmitem apenas fluidez e um grande mistério.
As sequências iniciais estão facilmente entre as melhores do filme e não é para menos: o conto de Hemingway cobre apenas os eventos do começo. Não será eu quem estragará o poder destes momentos resumindo-os em palavras menos potentes, o texto original do autor está disponível para os mais curiosos. Sem entrar nos méritos do conto clássico, este filme acompanha um investigador de seguros que esbarra em algo grande. As circunstâncias de um caso aparentemente supérfluo chamam a atenção de Jim Reardon (Edmond O’Brien) e o fazem mergulhar no passado de decadência e crime de Ole Anderson (Burt Lancaster), um homem com mais a dizer do que parece.
Não é incomum ver professores ou manuais de roteiro recomendando: evitem flashbacks. E há uma razão boa para isso. Todo personagem tem um passado, por mais que nunca seja mostrado em tela. Se não estiver no roteiro ou na bíblia da obra, o ator frequentemente inventa algum tipo de biografia para ajudá-lo a entrar no papel e canalizar as emoções daquele personagem. O problema surge quando esse passado é usado pelo enredo para justificar algo ou expor algum detalhe. Entra o flashback para levar a narrativa a algum ponto do passado e fazer essa tarefa. Na pior das hipóteses, o ritmo sofre e a história perde poder por não saber dispor informações numa dinâmica sutil e natural. Na melhor delas há “The Killers”, baseado quase completamente em flashbacks para reviver os pedaços de história que aconteceram antes do conto sem nunca deixar suas intenções à vista. O espectador sabe que está sendo arrastado bruscamente de um lugar conhecido — o tempo presente do protagonista — para outro bem diferente, mas duvido sinceramente que algum deles possa ser chamado de expositivo.
Mas o que diferencia o flashback daqui de um que tapa os buracos de um roteiro preguiçoso? Bem, eles não revelam nada. Não imediatamente, pelo menos. Uma história é contada, pedaços da vida de Ole Anderson são expostos, mas o que a audiência deve fazer com eles? Eles até se apresentam de um jeito comum, quando alguma pessoa senta para contar uma história, mas essas recontagens não deixam sua função à vista. Há uma razão por trás dos lampejos do passado do personagem de Burt Lancaster: juntos, eles revelam muito sobre a empreitada quase gratuita de Jim Reardon e aos poucos constroem uma grande história. O início da grande sacada é o fato de “The Killers” ser praticamente dividido em duas partes: uma é o começo, que reconta fielmente a obra de Hemingway; e a outra que expande essa história para frente e para trás, o que veio antes e depois. Tudo certo, com exceção de que a sequência inicial é tão sólida que carrega a força de um final competente. De onde mais pode surgir história? Mais história é absolutamente necessário? A mágica acontece quando tiram do absoluto nada um mistério e o desenvolvem o bastante para fazer o núcleo sólido do começo ser apenas a semente de algo muito maior e melhor. Detalhes demais apenas estragariam uma parte que tem seus sucessos baseados estritamente no enredo que constrói, então deixo apenas a garantia de uma grande narrativa.
É aí que o filme mostra seu ponto menos forte — nem ruim o bastante para ser um ponto fraco, nem chegando a atrapalhar o monumento que é o enredo de “The Killers”. Talvez o termo mais apropriado seja limitação. Enquanto o enredo guia o espectador por caminhos tortuosos e emoções afiadas, deixando a curiosidade no ar com um quê de cautela, falta um pouco desse mesmo poder por parte do elenco. O investigador de Edmond O’Brien, por exemplo, carece de uma motivação convincente para fazer tanto alarde em cima de um caso; falta um suporte subjetivo em sua personalidade para deixar tanta determinação mais palpável. Ele expressa objetivamente o porquê de suas ações sem convencer ninguém. Palavras tem poder ao mesmo tempo que palavras são vento, e as dele soam vazias como as de alguém que não está de corpo e alma em seu trabalho — diferente do Barton Keyes de “Double Indemnity“, que dá substância a uma atuação forte com uma natureza curiosa. Algo parecido se vê no Ole Anderson de Burt Lancaster, ao passo que em seu caso é uma falta de carisma que não me fez ter muita empatia por sua pessoa. Não é uma questão de gostar ou aprovar suas atitudes, pois a melhor personagem é também a mais corrompida, ele simplesmente não cativa como a femme fatale de Ava Gardner — uma personagem que, dessa vez, não deve nada a sua equivalente feminina em “Double Indemnity“.
Narrativamente fortíssimo e com um roteiro tão bem estruturado que não gratuitamente é comparado ao roteiro de “Cidadão Kane”, “The Killers” usa um breve conto de um dos maiores escritores de todos os tempos para criar um início épico e depois expandir esse sucesso. Finalmente mostrando que o que vem antes e depois de uma história boa nem sempre é uma desculpa dos estúdios para fazer mais dinheiro.