Existem dois tipos de filme que podem deixar quem assiste feliz: o que conta uma história otimista, de finais felizes; e o que faz você se importar tanto com personagens e eventos que se sente bem com sua conclusão. Os que se encaixam no primeiro grupo nem sempre funcionam. É difícil entrar na atmosfera de flores e arco-íris quando a vida real não funciona assim. Já o segundo grupo tem muito mais chance de ter sucesso, pois, independentemente de contexto, ele escolhe a empatia para capturar a audiência. “Intouchables” vai por este caminho, apresentando uma história tocante para sua premissa simples.
Driss (Omar Sy) é um ex-presidiário que tenta se encaixar o mais rápido possível na sociedade novamente. Seu plano é ser rejeitado em três empregos para poder receber o seguro-desemprego, mas sua terceira tentativa traz uma surpresa: Philippe (François Cluzet), um milionário tetraplégico, o desafia a aguentar 2 semanas como seu cuidador, apesar da postura agressiva de Driss na entrevista. Se ele não suportar as duas semanas, Philippe dá a assinatura que ele precisa e cada um segue seu caminho. O que nenhum deles esperava é que dali fosse surgir uma grande amizade.
O enredo ser relativamente simples, tratando da convivência entre dois amigos, não impede que exista a profundidade que torna “Intouchables” um grande filme. Na prática, mostram Driss e Philippe no seu dia a dia, nada de muito chamativo nisso. Entretanto, não há nada de rotineiro ou chato nesse cotidiano, nada que vá tornar a experiência chata como uma vida normal. Começa pelo fato de Philippe e Driss serem pessoas tão diferentes. Um é milionário, tetraplégico, tranquilo e apreciador dos luxos da vida — culinária, ópera, galerias de arte. O outro veio de uma região pobre de Paris, acabou de sair da prisão e tem um sério problema de atitude. Driss consegue não ter sequer uma qualificação notável para ser cuidador de Philippe, conseguindo o emprego sem nem desejá-lo.
Deste primeiro choque o leque só abre: “Intouchables” deixa de ser um filme focado apenas na amizade. A história abre espaço para auto-conhecimento, amor, perseverança e coragem. Os vários tons do filme só acompanham: uma ótima comédia ganha traços sutis de drama e romance sem perder sua identidade do começo. Isso acontece porque a estrutura, a alma, da obra continua a mesma do começo ao fim, ainda se trata de duas pessoas muito diferentes vivendo juntas. Sendo definido pelas experiências de seus personagens, é através delas que a variação aparece. A vida de Philippe é definida por padrões, seja receber massagens todos os dias ao acordar ou usar sempre o mesmo carro para se locomover. Driss vem para mudar isso. Ele acha que colocar meias num homem vai contra sua masculinidade e se recusa a se dedicar quando o assunto é higiene íntima; ele não limpa a bunda nem de quem ele conhece, como ele mesmo diz. Os protagonistas continuam no mesmo de sempre com umas novidade: visitar um lugar chique com os comentários sempre adequados de Driss ou vivendo a rotina caseira com cuidador desqualificado. No fim, é uma variação interessante do clássico modelo de dois amigos improváveis: os dois policiais que não têm nada a ver, um adolescente rebelde com um parceiro ciborgue… Funciona espetacularmente bem nas mãos certas.
Além de um bom roteiro, atores são essenciais para que um filme desse tipo faça sucesso. “Intouchables” depende muito de seu elenco e sua capacidade de fazer o espectador se envolver com a obra, de mostrar uma situação comum e torná-la relevante porque os personagens são tão excelentes. Omar Sy definitivamente tem o maior destaque por ser o agente da mudança em um ambiente que só conhecia a rotina. As festas de aniversário de Philippe eram tão chatas que cadeiras eram milimetricamente dispostas para convidados apreciarem uma pequena orquestra tocar música clássica. Ou como ele diz, todos vêm para ver se ele ainda está vivo. O granfino tenta mostrar alguns clássicos a seu amigo, mas este decide agitar a festa com algo mais animado, algo como “Earth, Wind & Fire” e uma caixa de som bem grande. Porque andar num furgão adaptado quando se pode dirigir um Maserati? Driss é um completo alienígena naquele mundo de finesse; para ele, música é “Kool and the Gang”, não Mozart. Sua doce ignorância é usada ao máximo quando poderia ter sido apenas um alívio cômico, ela funciona como um contraponto quase escroto de tão divergente na vida do milionário. Maravilha é o que Driss sente naquele ambiente. Philippe, por outro lado, não é tão estranho aos bens materiais que sempre teve, é o lado humano que o toca. Numa outra interpretação singular, François Cluzet não se deixa limitar pela condição de ser personagem e se relaciona com o mundo apenas do pescoço para cima. O ator faz valer a afirmação de que os olhos são a parte do corpo mais comunicativa do ser humano em gestos simples e incrivelmente complexos. Muitas vezes ele ri e se solta com o jeito de Driss, aprendendo um pouco desse estilo espirituoso de viver, enquanto às vezes aparece um traço de sofrimento por trás das risadas. O choque inicial passou, porém ainda fica um pouco do pesar de ter tudo na vida em alguns momentos e não ter nada em outros.
“Intouchables” é certamente um feel good movie, aquele tipo de filme que você assiste e se sente completamente bem no final. Não por ser uma história exageradamente feliz e otimista, mas por contar com dois atores incríveis na linha de frente de uma história de valores e tons diversos. É um par curioso, que rende boas risadas e muito mais do que isso ao mesmo tempo. Dramático, engraçado e enérgico, esta é uma obra que usa o conceito de amizade para além de risadinhas aqui e ali, são dois atores mostrando que o ser humano pode sim mudar, mesmo que sutilmente.