Robert Bresson é um caso interessante entre os diretores clássicos. Seu trabalho é considerado um dos mais importantes da história do cinema, influenciando principalmente a carreira de Paul Schrader — incluindo o próprio “Taxi Driver”. “Pickpocket” não é perfeito, mas um filme curioso: a objetividade — tão valorizada por roteiristas — é o lema quando a história economiza palavras, texto e tempo, mas é também a fonte dos problemas aqui; enquanto isso, a apatia dos atores — que poderia ser um ponto negativo, já que eles costumam ser agentes do drama — acaba sendo justamente o que dá a profundidade que falta ao enredo.
Michel (Martin LaSalle) é o clássico tipo esquisitão: fala pouco, age estranho e não dá uma dica do que se passa em sua cabeça. Morando num quarto sujo de Paris, ele se mostra má companhia aos seus livros empoeirados por se dedicar à arte de bater carteiras. Nas ruas ou no metrô, Michel dedica seu tempo roubando dinheiro para sobreviver. Para ele é um estilo de vida, mas o resto do mundo não concorda, afinal é bolso dos outros que fica mais leve. No fio da navalha, Michel caminha entre o risco de ser preso e obter algum prazer de sua vida insípida.
Pensando bem, não poderia ser mais apropriado que a obra de um diretor subversivo como Robert Bresson tenha os valores invertidos — a sucintez sendo ruim e a apatia boa. A forma não é revolucionária, nem tenta ser, é com o conteúdo que o diretor se destaca. Uma parte dessa abordagem singular envolve acabar com qualquer tipo de emoção que os atores possam ter. O diretor repetia tomadas exaustivamente até que as atuações ficassem desprovidas de drama e os atores não fossem mais que avatares da apatia. Nessa proposta, quem mais se beneficia é o elenco, principalmente o protagonista de Martin LaSalle. Quando o roteiro não providencia explicações para os atos do personagem, cabe ao espectador interpretar o que pode estar por trás daqui; roubar não pode ser um fim em si mesmo, onde está a graça nisso? Curiosamente, a falta de emoção fala mais do que se imaginaria. Basta olhar para Michel em sua primeira cena para entender o que roubar significa para ele; seu comportamento esquisito está estampado em sua figura, do terno mal ajustado à expressão cadavérica. Para quem não vê entretenimento nos cafés parisienses supostamente românticos, a saída é procurar diversão no bolso alheio. É nessas pistas dadas pelos atos do protagonista que as explicações subliminares surgem. Quem fala mais alto no cinema de Bresson são os corpos, não as palavras.
“É fácil fazer um filme, difícil é fazer um que seja bom”, como dizem por aí. A objetividade, detalhe importante para esse tal bom filme, é um dos grandes nortes da escrita de roteiro, assim como em qualquer outro tipo de texto. O infame encher de linguiça pode facilmente criar material para um longa-metragem, dificilmente um bom. Bresson certamente seria um dos mais críticos dessa postura por ser o completo oposto do artista prolixo. Os breves 75 minutos de “Pickpocket” ilustram essa objetividade muito bem; infelizmente, a um ponto que chega a ser ruim para a obra. Enquanto existe imagem na tela não há motivo para reclamar, é uma ótima experiência que passa sem se arrastar um pouco que seja. Não tenho problemas com ir direto ao ponto, só não tão direto; especialmente quando fica a sensação de que havia mais a ser dito. Isso não é dizer que ficam pontas soltas ou que a narrativa fica incompleta, apenas rasa e definitivamente abaixo do potencial do que foi mostrado brevemente.
Com esse ponto negativo, as coisas poderiam ter dado errado ainda mais facilmente. Em “Pickpocket”, é abordado um assunto que exala sutileza, afinal de contas, nenhum batedor de carteiras se deu bem sendo bruto. Cenas genialmente dirigidas por Bresson seriam um desastre nas mãos erradas, pois aqui o roubar é tratado como a arte da delicadeza e da destreza. Mas como representar isso? Um diretor incompetente colocaria dois personagens se esbarrando e uma tomada do ladrão com a carteira. Nunca Bresson. Ele se aproxima da ação, mostra os movimentos claramente e não esconde a perícia de seus personagens. Onde falta experiência, surge o suspense; quando a experiência aparece, com ela vem o sucesso. O trajeto de Michel é relativamente curto, como se espera de uma história curta, portanto o holofote fica por conta de quando ele entra em ação. Quando o ladrão não pode se dar ao luxo de perder tempo, o diretor também não pode se delongar com imagens desnecessárias. É estender o braço, abrir o paletó e pegar a carteira. Mais do que isso é pedir para ser pego, menos é sair de mãos vazias. Com um bom resultado na representação de atos sutis, não poderia ser diferente para as cenas mais tradicionais. Estas, combinadas com uma edição igualmente bem realizada, estão sempre escondendo algo do espectador e, assim, alavancam a narrativa para frente, que tanto vai para frente que logo acaba em sua duração reduzida.
Por fim, soma de tudo é bem positiva no final das contas. O roteiro não deixa questões a serem respondidas, apenas fica evidente que havia margem para um desenvolvimento maior. Alguns eventos se escalam abruptamente e outros, que começavam a ser antecipados, acontecem muito antes do esperado. Mas não é uma história curta que tira os méritos de imagens tão bem dirigidas. Com tanta excelência na hora de estabelecer o suspense pela próxima cena, o resultado não poderia ser diferente de fazer o espectador querer mais. Quem sabe alguns momentos a mais para desenvolver os temas de “Pickpocket” não o transformassem na obra prima que tanto falam?