Se por um lado o rebelde de James Dean em “Rebel Without a Cause” tinha uma causa, aqui o personagem de Paul Newman não mostra uma tão claramente — mesmo assim, o “Indomável” do título é tão certeiro quanto a mira do capataz eternamente calado. “Cool Hand Luke” pode enganar os desavisados — como eu — ao passar uma imagem de Faroeste com seu sol escaldante, horizonte sem fim e poeira até dentro dos ouvidos; o que também não quer dizer que a história seja menos grandiosa por isso. Com atuações competentes por trás do carisma do elenco, não há muita coisa para colocar defeito aqui. Com chapéu de caubói ou sem.
Cansado das regras sociais vomitadas aos montes, Luke (Paul Newman) decide agir contra elas enchendo a cara e desmontando postes de estacionamento na rua. É um ato inofensivo, mas a polícia não gosta muito e o manda para uma prisão rural, mais conhecida como o pior pesadelo para um rebelde. O lugar tem regras para a hora de acordar, de dormir e até para atender o chamado da natureza, mas Luke vê as coisas de um jeito diferente: o que para uns é sofrimento diário, para ele é uma grande oportunidade de ir contra a maré.
“Você põe o lençol limpo por cima, o lençol de cima por baixo e o lençol de baixo vai pra lavandeira. Quem entregar o lençol errado passa uma noite na solitária”. Nenhum dos novatos naquela prisão entende muito bem qual lençol vai para onde e a intenção é essa mesmo. Existem tantas regras que elas não podem ter sido feitas só para manter a ordem, as coisas funcionam de modo que só um lado fica bem, ou seja, não é o dos presidiários. “Cool Hand Luke” é um filme irônico em sua melhor forma: vai além de uma história objetiva sobre prisioneiros numa condição desconfortável; a graça está na distorção de valores daquele universo. Este é o produto de uma época de insatisfação, de uma população americana já cansada de mandar a juventude para a guerra e recebê-los mutilados. O descontentamento era universal, mas como lutar contra o sistema? Um filme que explore esses sentimentos é sempre um bom começo.
Uma das melhores sensações ao assistir um filme é ver quando existe harmonia entre os aspectos técnicos, em especial quando uma mensagem ou sentimento pulsa de diferentes maneiras ao longo da obra. Como o título sugere, aqui o tema é rebeldia. Não aquela rebeldia anárquica, a que faz as pessoas jogarem pedras na polícia e quebrar tudo, e sim aquela rebeldia com estilo. Paul Newman interpreta o clássico vagabundo despreocupado, aquele que não luta por uma causa porque seus planos simplesmente não têm uma. Na verdade, ele nem planos tem; lutar contra a ordem vigente é parte dele, não uma escolha. Essa poderia ser a descrição de um personagem determinado e até obsessivo, enquanto Luke está mais para uma versão descolada de um revolucionário, que em vez de encher os ouvidos dos outros procura brechas e oportunidade de tirar o equilíbrio da situação. Alguns chamaram o personagem de Jesus Cristo, uma figura que encontra punição tão certamente quanto o dia amanhece. Independentemente do paralelo feito, poucos desses exemplos são dignos de comparação quando se fala do carisma de Newman.
Não há muita história em “Cool Hand Luke”, o que pode fazer alguém se perguntar: “Qual é o ponto do filme, então?”. Assim como Luke faz, o ponto da história não é nada mais que fazer uma afirmação; dizer uma coisa ou duas sobre a sociedade e no mínimo expressar a infelicidade da população diante da situação atual. O protagonista não tem argumentos ou um motivo concreto para ficar bravo, ele faz o que faz sem pensar no porquê e nas consequências. O que isso tem para dizer sobre aqueles personagens? Se o espectador quiser acreditar nisso, Luke pode ser o Messias numa terra de ninguém, inspirando homens condenados a ver um pouco do lado bom de estar preso enquanto ele paga o preço por essa regalia. Eu prefiro ver que por trás disso tudo existem personagens cativantes e atores bem escolhidos; um roteiro bem escrito e uma direção que trabalham relações de poder eternamente contraditórias; Paul Newman num papel definidor de carreira e o brutamontes de George Kennedy com um cantinho suave em seu coração de pedra. São eles que tornam este filme interessante, eles transmitem a mensagem e fazem com que o espectador veja através de todo essa revolta contra o sistema. Em outras palavras, não são apenas atitudes que comunicam significados aqui, é um elenco de personagens bem escritos que torna esta mensagem legal de ser vista.
Mais do que isso, é com eles que surge a grande ironia por trás dessa história leve, que faz pouca questão de dramatizar os momentos potencialmente dramáticos. Os prisioneiros estão em um lugar onde as regras são rígidas, mas totalmente incoerentes. Como alguém deve respeitar qualquer coisa quando o preto é tão preto e o branco tão branco? Não há motivo para Luke sequer considerar entrar nos eixos. Ele é um herói de guerra, foi para o campo de batalha e encheu o peito de medalhas sem dar a mínima para tudo isso. Esses são vitórias vazias, os outros enxergam valor enquanto ele provavelmente penhorou todas para encher a cara mais um dia. Ele fez mais do que cem homens talvez nunca farão e, no entanto, deve chamar um caipira de chapéu de “capitão” e outro bruto de “chefe”. A revolta que parecia gratuita não poderia ser mais sensata. O tal Cool Hand Luke — como é chamado por seus colegas — vê os podres da sociedade e luta contra eles, aproveitando para se divertir no processo.
Felizmente, o espectador pode se divertir junto nessa jornada singular. Poderia ser um textão, uma pixação de parede ou um ato de vandalismo, mas não é da índole de Luke fazer essas coisas. Para ele, puxar o tapete dessa suposta ordem cristalizada já é o bastante, mesmo que ele se dê mal, mesmo que não mude nada. Será descrença de sua parte? Talvez ele saiba que as regras são frágeis, mas a base é forte. Em seu mundo, ele não muda nada sozinho; para a audiência, em contrapartida, rende uma porção de bons momentos e uma mensagem bem clara da sociedade dos Anos 60 para o sistema: “O que temos aqui é uma falha de comunicação”.