Dos personagens mais famosos do Cinema Mudo, o garoto de óculos de Harold Lloyd certamente está na briga pelo posto de mais icônico. Na competição? O Carlitos de Charlie Chaplin e o cara-de-pedra de Buster Keaton. A preferência costuma pender para o lado de Chaplin, mas é inegável que todos os três foram responsáveis por algumas das obras mais queridas daquela época; cada um com sua variação do personagem atrapalhado e meio ingênuo. “Safety Last!” é o trabalho mais famoso de Lloyd e, com razão, é frequentemente visto em listas de melhores filmes mudos por aí. Não é nostalgia falando alto, é qualidade mesmo.
Harold (Harold Lloyd) é um jovem desastrado que sai de sua casa no interior para tentar ganhar a vida em Nova York. Ele pede para sua noiva (Mildred Davis) esperar até que ele consiga um bom emprego, mas sua vontade de impressioná-la acaba dando uma idéia errada a ela, levando-a a ir antes da hora. Na verdade, Harold é apenas um vendedor que tira 15 dólares por semana numa loja de tecidos. De seu jeito bobinho, ele tenta mostrar para sua esposa que está bem de vida e ao mesmo tempo manter seu emprego, uma tarefa difícil quando seu azar parece estar em alta.
Se um filme pudesse servir como argumento definitivo para a importância de um clímax, “Safety Last!” seria um forte candidato. Até chegar nele, a história funciona mais ou menos na dinâmica das comédias mudas: protagonista atrapalhado tem dificuldade para fazer as coisas mais simples e facilidade para escapar das maiores enrascadas. Mostrar um tecido para um cliente pode deixar algumas roupas rasgadas, já subir um prédio de terno e gravata não parece ser uma dor de cabeça tão grande. Sem muita história para se agarrar, este longa acaba dependendo exclusivamente das palhaçadas do protagonista. Tudo o que ele faz de errado e as coisas que acontecem com ele são o combustível que mantém o espectador vidrado.
Francamente, não tenho tanta paciência para o Cinema Mudo. Não o negligencio de forma alguma e, inclusive, acho que existem várias obras boas. Mais importante que isso: elas têm muito a ensinar no quesito de fazer filmes, se este for o desejo do espectador. Todas as óbvias limitações técnicas pedem por algo mais quando o objetivo é não deixar quem assiste ficar entediado; as imagens e a música devem compensar a falta de bordões icônicos e frases de efeito. A produção sabe muito bem disso e engata uma trapalhada na outra sem deixar tempo para que as coisas esfriem. Mas ação e movimento o tempo o todo não tornam a experiência monótona? Sim. Se “Safety Last!” fosse a mesma coisa do começo ao fim — esse esquema do desastrado nas atividades diárias — a experiência certamente não seria o que foi. Felizmente, a idéia não era fazer o que os outros já haviam feito antes. Nas cenas já conhecidas o sorriso permanece garantido. Mesmo que se saiba como o protagonista vai se enrascar, não há como não se divertir com as formas criativas que arranjam para mostrar esse azar todo. É mantendo sempre um clima leve e o espectador preparado para uma nova gracinha. Só há uma coisa que ninguém estava preparado, uma sequência universalmente famosa e não menos empolgante por isso.
O segredo aqui é o clímax, aquele momento que faz toda e qualquer cena de antes parecer mixaria. Na clássica jornada do herói seria a etapa da ressurreição, em outras histórias seria algo como o maior desafio enfrentado pelo protagonista. Depois de pegar caronas involuntárias, salvar seu emprego e não decepcionar sua esposa — sempre desajeitadamente — Harold tem de escalar um prédio sem qualquer ajuda. Aliás, acontece bem o contrário. Como até amarrar os sapatos numa comédia muda é motivo para desastre, subir um prédio não poderia ser diferente. Nada do que veio antes está no mesmo nível de ousadia, ambição ou empolgação mesmo. Não é uma sequência de palhaçadas ingênuas — como boa parte da história — neste momento o espectador sabe que a confusão de emoções sentida só pode ser a garantia de um bom filme. É comédia com maravilha e até um pouco de tensão, a verdadeira definição da pergunta: “É possível fazer isso numa época em que os atores nem falavam?”. É uma pergunta retórica, claro, pois é bem claro que o prédio, o ator e a rua são reais. Essa sequência não é apenas boa, ela entrou para a história como um dos momentos mais icônicos e definitivos do cinema da época. Sem efeitos especiais e sem truques, Harold Lloyd escalando um prédio define bem o que seria um entretenimento honesto, que coloca a mão na massa e impressiona justamente por transparecer a verdade de suas imagens. Nada muito diferente daqueles filmes feitos sob condições desfavoráveis — como “The Revenant” — e dos atores metódicos. Não é preciso se esforçar para fingir algo, a câmera filma as coisas como elas são.
Mesmo sendo um belo trabalho, não diria que gosto mais de “Safety Last!” ou de Harold Lloyd mais do que outros filmes mudos, falta a singularidade e o carisma de Chaplin, por exemplo. No entanto, seria um exagero falar que ele fica muito atrás. Lloyd pode não ter o andar esquisito ou o bigodinho único, mas ele tem talento e ambição para fazer cenas como a do prédio. Mais do que se sobressair em importância, esse clímax assegura que todo o resto realmente valeu a pena.