“Um documentário sobre fraude e falsificação”, é o que diz a descrição de “F for Fake” no IMDb. Num primeiro momento essas simples 6 palavras foram o bastante para gerar outro de meus achismos errados: eu achava que o assunto era estritamente sobre pirataria. No fundo, a pontual descrição não deixa de mostrar exatamente do que esse documentário se trata. Fraude e falsificação no sentido cru podem ser palavras fortes, mas o que é o cinema além de uma grande fraude? É uma fraude mágica, um grande truque que traz os sonhos mais diversos mais perto da realidade, mas não deixa de ser uma farsa. Sylvester Stallone não é John Rambo e Marlon Brando não é Vito Corleone. Mas sendo eles tão excelentes, será que ser uma farsa é tão ruim assim?
Welles faz um documentário sobre o que é ser falso, em poucas palavras. Além de uma mera explicação ilustrativa, ele subverte o significado e coloca o senso comum contra a parede quando muda o ponto de vista várias vezes. Ser falso é contar uma mentira? Quem é habilitado a dizer o que é verdade? Entre essas questões entram uma série de metáforas e exemplos práticos, o principal deles sendo a história de Elmyr de Hory, possivelmente um dos maiores artistas que ninguém ouviu falar. Isso porque ele é um grande falsificador de arte, pintando de Monet a Picasso sem ter uma fração do reconhecimento deles.
Mas do que “F for Fake” se trata afinal? Bem, nada muito além do que disse antes. No geral, parece que este é um projeto que Welles fez por diversão, como se tivesse conhecido Elmyr de Hory numa viagem boêmia e pensado: “Por que não fazer um filme desse cara?”. Dessa postura descontraída vem uma obra que não está muito preocupada com convenções do gênero; muito pelo contrário, é uma rejeição bem humorada de todos os clichês chatos que são lembrados quando falam em documentário. Tudo começa com a voz do diretor em off screen dando instruções a um garoto. De sobretudo e chapéu, agora ele é um mágico fazendo um par de truques. Não muito depois, entre taças de vinho, aquarelas e quadris femininos, voltam finalmente ao cineasta em seu estúdio falando sobre o assunto em questão. Ele parece estar muito confortável ali, realmente pouco ligando para a missão de ser um agente neutro por trás da câmera. Não há lugar para cinema vérité num filme sobre mentiras.
Orson Welles é mais conhecido por ser um diretor visionário, aquele que dirigiu “Cidadão Kane”, o filme dos filmes. Com esse e outros sucessos em seu portfólio, é apenas natural pensar que “F for Fake” seria um experimento interessante. Welles dirigindo um documentário, qual novidade ele pode trazer? No entanto, é curioso ver que a direção não é o aspecto mais chamativo aqui. Falando em termos de imagem, dá até para dizer que ele e seu cinegrafista estavam meio bêbados quando gravaram muitas das cenas. Elas não são exatamente escolhidas a dedo. Certos momentos colocam Elmyr pintando uma de suas obras — ou, melhor dizendo, as de alguém — mas a câmera está em uma posição desfavorável. Parece um tiro no pé vindo, mas é difícil dizer exatamente o que ele quis com isso. Há muita coisa na tela ao mesmo tempo e, não surpreendentemente, dizem que alguns detalhes só vêm à tona em outras assistidas. Num primeiro momento, porém, parece que ele sabia que seu às de espadas era a edição e o roteiro.
Sua despreocupação com ângulos milimetricamente escolhidos apenas reflete a postura tranquila do diretor para com seu material. Welles inicialmente parece que apenas dá voltas ao redor do assunto sem nunca se aprofundar, isto é, até a hora em que estes vários rodeios começam a se sobrepor e, assim, fazer mais sentido. Na verdade, ele apenas aborda o assunto com muita liberdade, mostrando aqui a naturalidade que falta em tantos outros documentários. Nada de closes e perguntas em sequência, ele prefere perguntar o que der na telha enquanto bebe vinho e degusta uma lagosta. Enquanto isso, a edição brinca nos bastidores com inúmeras horas de extravagância. Descrever o que fazem aqui é como explicar uma piada interna para alguém de fora: no fim você parece um idiota e a graça continua inexistente. São cortes tão dinâmicos que erros são perdoados e sentido se cria, traduzindo-se como uma sinfonia hiperativa sobre um assunto que é abordado de todos os jeitos e nunca se perde. Numa hora Orson Welles realiza truques de mágica, em outra ele simplesmente fala de sua própria vida: “Eu comecei no topo e vim descendo de lá desde então”, diz ele. Uma vida que começou com mentiras não poderia ser uma metáfora melhor para um filme chamado “F for Fake”, ou talvez um artista que vendeu inúmeros quadros falsificados para grandes museus e galerias de arte seja ainda melhor, mostrando que não existe falso quando a própria verdade não tem credibilidade.
No fim são tantas metáforas, histórias de vida, histórias sobre histórias, mitos e palhaçadas que a única coisa clara nessa zona é que não há nada realmente verdadeiro. A intenção era falar sobre um tema, um fenômeno, de tantas maneiras quanto possível. Talvez não seja a melhor forma, mas com certeza Orson Welles conseguiu chegar a algum lugar com tudo isso: roteiro e edição dão ordem ao aleatório e mostram através da diversidade que a fraude está mais presente por aí do que se pensa. Ou será este filme outra grande enganação?