De um jeito ou de outro, todo Noir acaba falando sobre um mistério. Em alguns casos ele é resolvido rapidamente, servindo apenas como um passo num enredo mais complexo; em outros, como em “The Big Sleep”, ele é o coração da história. Popularmente conhecido por quebrar a cabeça de muitos espectadores, este obra de Howard Hawks ilustra novamente sua versatilidade nos vários gêneros de cinema. Mas seria este outro exemplo no qual ninguém entende nada e elogia por medo de sair do senso comum? De forma alguma, este não é outro filme arte sem pé nem cabeça.
Philip Marlowe (Humphrey Bogart) é um detetive particular de Los Angeles. Contratado por um general bem de vida, ele passa a investigar uma das várias confusões de uma de suas filhas, que desta vez está sendo chantageada por conta de suas dívidas. Algumas coisa não se encaixa, porém. Antes de começar seu trabalho, Marlowe tem uma conversa curiosamente reveladora com Vivian (Lauren Bacall), a outra filha do general. Pedaços de informação aqui e interesses repentinos ali mostram que talvez a tarefa de Marlowe não é tão simples. O que era pra ser algo simples logo se torna muita areia para o caminhão de um singelo detetive. Ou será que não?
De certa forma, pode-se dizer que existem mistérios e mistérios. Assim como a sutileza não é a mesma coisa que negligência, mistério não é sinônimo de inexistência de informação. O que diferencia “The Big Sleep” de obras que não sabem amarrar suas pontas soltas é que no fim tudo fica bem explicado. Bem, não exatamente tudo. O único ponto negativo é que algumas ainda sobram, mas nada que estrague a obra. No entanto, isso é a história fazendo não mais do que sua obrigação, como meu pai diria. O principal acerto da trama é complicar-se à beça antes de pensar em colocar as coisas no lugar. É uma história tão complexa que me fez pensar que sou burro para estar tão perdido. Quem é Geiger? Quem atirou em quem e por quê? O que Vivian está escondendo? Ou faltava Q.I. em mim, ou a história era propositalmente cheia de detalhes. Felizmente, acredito que a situação estava mais para o segundo caso, pois a trama aos poucos se explica e mostra como tudo se encaixa; de seu jeito meio confuso ela conduz o espectador pela mão do começo ao fim, primeiro confundindo-o para depois mostrar que ele não era burro como pensou. Nada muito longe do que se vê nos livros de Agatha Christie, nos quais os mistérios costumam ser resolvidos nas últimas páginas.
Como a trama não conta com um narrador para revelar esses detalhes, cabe a Philip Marlowe ser a mente que coloca tudo no lugar; interpretado aqui por um ator popular no Noir, ninguém menos que Humphrey Bogart. Mas não foi ele que havia interpretado o icônico Samuel Spade no igualmente clássico “The Maltese Falcon“? Sim, é o mesmo ator interpretando um detetive particular em dois Noir diferentes. A primeira coisa que vem à cabeça é que Howard Hawks ficou com a escolha segura, o que não é bem o caso. Embora a profissão seja a mesma, Samuel Spade não tem nada a ver com Philip Marlowe. Um deles é um cara durão, meio coração de pedra, que tem a sobrevivência como a coisa mais importante; o outro está mais para um ser humano do que um herói de terno e gravata, guardando espaço para emoções e uma personalidade verdadeira por trás dos drinks e cigarros. Só posso dizer com certeza que eles compartilham uma inteligência invejável, o que não é surpresa quando tal qualidade é tão importante para alguém que soluciona mistérios como ganha pão. Devo admitir que não achava que Humphrey Bogart fosse se sair tão bem como o fez. Definitivamente esperava mais da atitude prepotente de seu personagem anterior quando, por fim, acabei encontrando um Marlowe que faz um trabalho tão bom quanto Spade usando métodos diferentes.
No final das contas é ele o maior responsável por tornar “The Big Sleep” um filme mais completo que o resto do gênero. Além de ser o cérebro que bota ordem em tanta bagunça, ele é o cara que sente, que usa a força quando necessário e ainda tem de pagar as contas no final do dia. É através das coisas que ele faz e do que ele fala que o espectador se orienta, ele funciona como um porto seguro num mar de confusão. De certa forma, não deixa de ser uma metáfora para tudo o que o Noir representa: a tensão social e descontentamento da população no pós guerra. Num mundo de cafajestes e trastes, alguém mostra que é possível se virar sem tornar-se um dos caras maus. Por um lado, isso faz deste um dos Noir menos pessimistas e mais humanos, por outro mostra que apenas os mais fortes têm chance numa realidade tão suja. Há uma porção de pessoas com um quê de esperteza, mas poucos conseguem se igualar ao protagonista. Sem os diálogos, porém, Marlowe nada seria. São eles que ressaltam sua inteligência quando todo o resto é confuso. Entre tapas de luva e palavras bonitas os personagens mostram quem realmente são. Situações diferentes pedem posturas diferentes e, como num jogo de cartas, ninguém revela sua mão repentinamente. Cada conversa traz nas entrelinhas uma pequena revelação sobre os envolvidos. Tudo torna-se ainda mais interessante quando dois personagens fortes dividem o mesmo espaço, deixando de lado os monólogos para destacar a glória de Bogart e Lauren Bacall numa mesma mesa de bar.
Não foi à toa que na morte da atriz, em 2014, este tenha sido um de seus papéis mais comentados, trata-se simplesmente de um dos melhores filmes de todos os tempos. Praticamente todo Noir tem um pouco de mistério em sua história, mas nem todos o exploram a fundo como “The Big Sleep”. De um jeito parecido, muitos diretores se aventuram em mais de um gênero em suas carreiras, mas poucos o fazem com tanta competência quanto Howard Hawks mostra aqui.