O lado bom de participar de um Festival de Cinema é encontrar filmes que provavelmente nunca teria outra oportunidade de ver. Onde eu acharia uma produção egípcia sobre as tensões políticas no país? Na melhor das hipóteses em outro festival ou quem sabe daqui uns 30 anos quando “Akher Ayam El Medina” se tornar um clássico do cinema árabe. Por essa chance única e por não encontrar aqui outra decepção fico feliz em dizer que este é um dos filmes alternativos que funciona em sua fórmula, bem, alternativa. Seguindo a tendência do ritmo lento e narrativa vagarosa, este longa-metragem dá um insight interessante sobre a situação política no Egito de alguns anos atrás.
A história propriamente dita gira em torno da vida de Khalid (Khalid Abdalla) no ano de 2009, um cineasta que tem dificuldades com seu mais novo projeto. Ele procura capturar o espírito de Cairo, a cidade onde vive, através do depoimento de pessoas, de filmagens da cidade em si e dos conflitos que tomam conta das ruas. Ao mesmo tempo ele lida com problemas em sua própria vida: sua mãe está internada no hospital e chegando nos finalmentes da vida, os amigos desenvolvem seus próprios projetos em outras cidades e um de seus amores está indo embora. Homem e cidade andam no fio da navalha, ambos vítimas de forças maiores que deixam os ânimos sempre tensos.
“Akher Ayam El Medina” focar em eventos de 7 anos atrás pode indicar que o diretor supostamente se atrasou para colocar sua produção em andamento. Felizmente, este não é um Documentário, muito menos uma reportagem e foi um filme bem informativo mesmo assim. Até ver esta obra não havia pesquisado muito sobre o que acontecia no Egito em 2009. O máximo de contato que tive foi com a explosão da primavera árabe no ano seguinte, quando o assunto ganhou força e tornou-se um assunto provável para a redação de vestibular. Vale dizer também que minha falta de informação não significa que esta é outra história que se perde na proposta e ganha uns pontos pelo assunto abordado ser interessante. Do começo ao fim fica claro que o núcleo da narrativa são as tensões e o atmosfera de insegurança de várias cidades da região. Saber mais especificamente qual o problema é apenas um toque da inteligente direção de Tamer El Said, que demonstra seus esforços em total sintonia com o uso do som — especialmente a edição — entre outros aspectos.
O que isso significa? Efetivamente, El Said encontra uma maneira de tornar interessante informações que poderiam muito bem ter sido vistas como uma contextualização expositiva, algo com o simples propósito de localizar o espectador nas circunstâncias da trama. Um simples passeio na rua acaba sendo muitas vezes revelador: dia e noite contam com manifestações contra o governo, enquanto no segundo plano um rádio frequentemente dá as últimas notícias. Aparentemente nada de novo, mas aqui a mídia é realmente manipulada, isto é, com o diretor selecionando informações relevantes. Através destes noticiários descobre-se que o povo egípcio está ansioso pelo resultado das eliminatórias da Copa do Mundo de 2010, especialmente pela partida contra a rival Algéria. Então as coisas ficam interessantes: aos que conhecem o plano de fundo o jogo é um sinal claro, ao resto do público também. Como isso é possível? Simples, do modo como os fatos são relatados há um claro caráter escapista sobre aquelas notícias, mostrando que a escolha das palavras do roteiro é essencial para esse efeito. Essas transmissões surgirem pontualmente e de forma orgânica são apenas um bônus.
O único problema aqui — também comum em outros filmes de ritmo lento e com mini-tramas — é que qualquer deslize costuma ficar bem evidente. A trama ser reduzida oferece, de certa forma, menos estímulo ao espectador, tornando mais difícil que sua atenção seja desviada de descuidos, como os ocasionais trechos do projeto do protagonista. Francamente, tirando um ou outro momento que desenvolve algum aspecto da história há pouca necessidade deles ali. Por outro lado, vale notar que alguns destes são melhorados novamente pelo uso esperto do som. Em vez de apresentar conversas pouco fluídas e mecânicas — como em “El Viento Sabe que Vuelvo a Casa” — o diretor coloca um trecho relevante do papo junto de imagens que sugerem que a entrevista ocorreu, assim condensando o conteúdo de forma eficaz. Os momentos que realmente fazem a diferença são poucos, um deles se destacando por desenvolver a figura do protagonista injustamente deixado de lado. Não é falta de atividade dele na história que mostra-se prejudicial. Ele é um protagonista passivo, embora isto não signifique ficar alheio no mundo ao seu redor. Também não é a atuação de Khalid Abdalla que deixa a desejar, uma vez que ela dá a entender que existe um conflito latente ali. O elemento que faz sua ausência sentida é o desenvolvimento deste mesmo conflito. Sem ele, o espectador fica apenas com repetidas cenas de Abdalla olhando para o nada com cara de quem tem mil e um pensamentos.
Profundo e cativante, “Akher Ayam El Medina” se destaca também por ser informativo, de sua maneira, colocando em pauta a série de conflitos ocorridos no Egito em 2009 e desenvolvendo sua história a partir dali. O centro de tudo é o conflito, a sensação de que as coisas vão desabar a qualquer instante. O país está em crise política, a capital mostra este atrito em força total e nem mesmo a vida pessoal do protagonista fica segura. No fim das contas, esta obra é uma interessante aplicação de conceito em várias camadas diferentes.