Visionário é um ajetivo forte, frequentemente usado de maneira leviana para descrever alguém competente. No cinema e nas artes em geral há um certo descuido e o termo acaba sendo usado ao primeiro sinal de qualidade. Tudo bem, há diversos artistas bons no mercado, mas nem todos estão num patamar alto para receber este mérito. Por outro lado, Charles Chaplin é alguém que facilmente pode entrar nesta categoria. Vários de seus filmes, como “The Gold Rush”, foram feitos numa época em que o cinema não tinha tantos recursos como hoje e ainda assim mostram-se tão vivos hoje como quando foram lançados, cerca de 90 anos atrás.
No geral, este é outro daqueles filmes simples. A premissa, por exemplo, mostra que um enredo complexo definitivamente nunca foi planejado como a chave para o sucesso. No Alaska, um movimento em busca de ouro reúne cada vez mais gente. Muitos encontram destinos infelizes. Decepcionam-se por não achar nada e até encontram a morte. Mas não o pequeno garimpeiro (Charles Chaplin). Ele também procura sua fortuna, só que encontra mais do que isso. De mãos vazias ele com certeza não sai quando um bandido foragido, um urso, uma cabana desolada, muito frio e um pouco de fome cruzam seu caminho.
É um pouco difícil falar de filmes como este, pois, por mais que muita gente não tenha visto, quase todos sabem qual a dinâmica do trabalho de Chaplin. Seus métodos foram reproduzidos, homenageados e referenciados incontáveis vezes ao longo dos anos, então poucos realmente desconhecem seu trabalho. No entanto, acredito que ainda menos gente se pergunta por que uns filmes mudos funcionam bem até hoje e outros nem tanto. Pensando nos fatores que fizeram a diferença no teste do tempo, diria que a simplicidade é um deles. Aparentemente, Chaplin sabia das limitações de seu tempo. Ele não buscava complicar as coisas para satisfazer possíveis necessidades de ego, apenas fazia o que sabia usando o que estava a seu dispor; o que normalmente significa roupas que vestem mal, sapatos grandes, uma bengala, um chapéu e, de vez em quando, um par de garfos e dois pãezinhos.
“Quem quer, dá um jeito”. É muito fácil se imaginar na posição de diretor de “The Gold Rush” e enxergar uma tonelada de limitações. Em primeiro lugar, trata-se de um filme mudo, o que para muitos espectadores já é um contra gigantesco. Bem, talvez não tão mudo assim, pois o longa foi relançado em 1942 com uma trilha sonora dedicada, narração e uma edição revisada. Apesar desses detalhes, este é um filme mudo em todos os aspectos realmente importantes. Então volta à tona meu ponto anterior: fazer muito com pouco. Há pouca história, então os eventos precisam de conteúdo para ter sucesso; todas as piadinhas devem ser planejadas e executadas de forma que não fiquem vazias ou gratuitas.
É aí que entra o verdadeiro significado de arte: planejar algo com tanta dedicação que o resultado pareça fruto do mais natural improviso. Não foi à toa que dois pãezinhos e um par de garfos resultaram em uma das cenas mais icônicas da história do Cinema. Para mim esta parece uma daquelas palhaçadas aleatórias que, de uma hora para outra, ganha sentido. Em um pico de criatividade a bobeira torna-se uma cena tão grandiosa que contém a essência do filme em si. É o tipo de coisa que um parente mal educado faria num almoço em família, brincando com comida e horrorizando os moralistas alheios. “The Gold Rush”, em contrapartida, não é um almoço de domingo. Falo de um filme que é quase um desenho animado em seu tratamento da realidade, que apresenta uma situação absurda atrás da outra sem nunca sair dos trilhos. A dupla de pães e garfos é como as pernas de uma dançarina que dá um show particular, mostrando perfeitamente como dois objetos tão ordinários podem ter um grande propósito. Como um filme praticamente sem trama pode ter sucesso.
Por eu ter assistido à versão de 1942, não posso dizer como a versão original se sai hoje em dia, embora imagine que pior. A inédita narração diz apenas o essencial e funciona quase como os letreiros do filme mudo, isto é, sem toda aquela pausa desconcertante que torna a experiência cansativa. De todos os benefícios que isso traz, cortar 23 minutos é certamente um dos mais importantes; especialmente para um filme que depende tanto do movimento. É um corte considerável que faz muito pelo ritmo. Aqueles que tiverem interesse pelo trabalho de Charlie Chaplin certamente não ficarão insatisfeitos com “The Gold Rush”. Pode não ser o melhor do cineasta, mas certamente é um clássico em todos os sentidos da palavra.