“La Grande Illusion” é outro daqueles filmes com uma história fora dos rolos de filme mais interessante que seu próprio enredo. Tanto faz se o espectador amou ou odiou esta obra, o que aconteceu com ela ao longo dos anos não é pouca coisa. Joseph Goebbels, ministro de propaganda alemão, confiscou o negativo original desta obra quando a Alemanha invadiu a França e voltou para a França por coincidência só depois de passar por vários países. Goebbels considerava Jean Renoir seu pior inimigo no mundo do cinema. Mas seria isso um atestado do poder da história e dos temas da obra de Renoir ou apenas a paranóia de um governo opressor e falho?
As fotos de uma missão de reconhecimento saem um pouco borradas numa certa região. Como aquela área era interessante para as tropas francesas, o Capitão de Boeldieu (Pierre Fresnay) e o Tenente Maréchal (jean Gabin) são enviados para tirar novas fotos, mas seu avião é abatido e os dois são capturados. Por trás de tal ato está o capitão von Rauffenstein (Erich von Stroheim), oficial alemão que acomoda os dois prisioneiros, os introduz às suas instalações novas e até cria certa afinidade com de Bouldieu. O que se segue é uma visão pacifista do que significa guerra para aqueles que não estão no front, aqueles que por cargo são tratados com mais cortesia que os peões do conflito.
Se esta obra é realmente tão épica, como muitos apontam, é um assunto para debate, mas a direção de Jean Renoir definitivamente se sobressai. Como muitos sabem, “Citizen Kane” representou uma revolução do cinema, mais especificamente da composição de cena e direção. A liberdade que Orson Welles teve foi ótima, pois ele aproveitou a chance para se libertar das amarras dos estúdios da época. No entanto, por mais que toda revolução seja chamada assim por mudar tudo repentinamente, não é bem assim que as coisas acontecem. Nada acontece sem precedente e neste caso não é diferente. Antes do estrondo da obra de Welles outros filmes tiveram seus pequenos estouros. “La Grande Illusion” mostra exatamente isso.
A direção e jogo de câmeras de Renoir está bem no meio do caminho entre o cinema clássico e “Citizen Kane”. Várias cenas aparentemente dão delizes, saindo daquele padrão antigo e mostrando sinais de mudança. Naquela época, o cinema ainda era muito influenciado pelo teatro e pela presença da câmera no ambiente. O aparelho servia como um ponto de referência pelo qual os atores e objetos se posicionavam religiosamente, muitas vezes um ao lado do outro em linha para ficarem bem visíveis no quadro. Em certo momento, por exemplo, dois soldados alemães dão instruções aos prisioneiros do campo; nos dois planos aproximados seguintes — dos que falam e dos que ouvem — a configuração linear se mantém. Porém quando a multidão se dispersa não há organização nenhuma. Todos quebram as linhas — uns andando, outros correndo — outras pessoas entram em cena de fora de quadro e em sua bagunça inovam quase que espontaneamente o Cinema. Talvez tão impressionante quanto isso é como Renoir cria uma mise-en-scène dinâmica, mas extremamente restrita ao estilo clássico. Uma manobra comum do diretor é manter a mesma encenação linear até em movimentos panorâmicos: a câmera roda em seu próprio eixo e captura os elementos a sua volta como se estes estivessem bem de frente, todos milimetricamente posicionados. Não sei dizer se com isso o cineasta estabelece um conflito direto ou se faz o que pode com as cartas que lhe foram dadas. Ou ambos. De qualquer forma, fica minha apreciação pelo trabalho na composição destas cenas.
Como filme, entretanto, “La Grande Illusion” desaponta. Sim, este longa é tido por muitos como a obra prima de Jean Renoir, tem sua importância histórica e até uma história bacana por fora da obra em si, mas simplesmente falha na hora de engajar o espectador. Este é um clássico exemplo no qual as mensagens de fundo sobressaem o grosso da obra. Existe uma interessante temática filosófica por trás dos eventos apresentados, um discurso filosófico e sociológico sobre existencialismo. Essencialmente, falam muito sobre as várias barreiras invisíveis que os humanos criam entre si, as tais grandes ilusões. Prisioneiros de guerra são prisioneiros de guerra, exceto se o indivíduo for um oficial, aí o tratamento é diferente. Entre estes capturados existem mais divisões, pois existem os oficiais que vieram da burguesia e os que subiram de vida por meio do exército. Isso sem contar a mais clara de todas, os captores e os capturados. Acho que é um tanto difícil de dizer que a idéia é desinteressante, mas é essa impressão que o filme passa.
Os eventos mostrados são completamente casuais e falham em apresentar contexto que dêem essência a eles. Não é aquele café da manhã normal que surpreende por sua profundidade, são acontecimentos que saem de cena da mesma forma que entram: sem fazer muita diferença. Talvez parte desse sentimento se deva pelo elenco de protagonistas rasos. De certa forma, não é nenhum absurdo dizer que o protagonista de uma história é responsável por coisas demais para listar, mas uma delas certamente é a transmissão de valores. Claro, não há como concentrar todos os significados nele, por isso até mesmo a contradição destes significados mostra o que obra, no geral, quer falar. Quando os personagens mexem com o espectador e o incentivam a acompanhar seu trajeto, o resultado costuma ser positivo. Não é isso que acontece aqui.
Infelizmente, este é outro filme clássico de boa reputação que simplesmente não me atingiu da forma que eu antecipava. Não por eu esperar algo diferente do que vi, foi mais por eu não ter gostado tanto quanto outras pessoas. De fato o plano de fundo filosófico é interessante, só faltou uma representação digna de tudo isso. Uma boa idéia ainda precisa de alguém para transmiti-la, afinal de contas.