A princípio, “Adaptation” foi indicado para mim como um filme de roteirista para roteirista. Obras que falam sobre cinema não são novidade nenhuma; só de cinema mudo pode-se citar “Sunset Blvd“, “Singin’ in the Rain” e, mais recentemente, “The Artist”. No entanto, esta obra de Spike Jonze não se deixa limitar por um rótulo. De fato o protagonista e boa parte da trama envolvem a escrita de um roteiro, mas não é isso que realmente chama a atenção. Não é outra história de como uma pessoa escreveu o trabalho de sua vida depois de muita luta, é uma representação fiel do ser humano e seus dilemas.
Charlie Kaufman, interpretado por Nicolas Cage nesta… Sim, não há confusão nenhuma. Kaufman é roteirista deste longa e protagonista de sua própria história. O enredo gira em torno de como o personagem passa por um bloqueio criativo na adaptação de um livro sobre orquídeas. O conflito chega a tanto que ele se escreve no próprio roteiro — como aconteceu de verdade — e conta a história do livro em paralelo com sua própria dificuldade de colocar aquele material nas telonas.
Para quem achou que a sacada da obra é apenas uma coincidência espertinha digo apenas que não. Com um olhar mais abrangente nota-se é apenas um pedaço da constelação de relações temáticas dessa obra. Talvez o mais relevante, sim, mas ainda um detalhe diante de todo o resto. Se o espectador voltar a fita um pouco verá que o conflito mental — um tema proeminente — tem início nas origens do livro que supostamente viraria filme. A autora relata em seu livro mais do que os fatos vividos e investigados por ela, seu livro também conta todos os dilemas de vida enfrentados em sua busca por informação. Ela procurava saber mais sobre um cara que roubava orquídeas e encontra nele a faísca para uma série de questionamentos. O que leva um homem banguela a enfrentar a lei por um punhado de flores? O que é sentir paixão de verdade por algo? Ela nunca achou que estaria fazendo estas peguntas em uma pesquisa rotineira sobre flores que quase ninguém liga.
O livro dela sai, no final das contas, se torna um dos mais vendidos do New York Times e chama a atenção de Hollywood. No fim, Charlie Kaufman é o contratado para a tarefa de transformar um livro sobre flores em algo rentável. Mas como diabos se faz isso? Nem ele sabe. Após meses considerando dez mil possibilidades improdutivas, o roteirista se conecta com o livro e dele absorve a experiência transcendental da autora. A partir das próprias reflexões dele ele encontra as suas. Se ela mudou sua visão de mundo por causa de flores, porque não mudar o roteiro? As divagações do livro complicam ainda mais a adaptação de uma história bizarra, mas isso não é problema quando as perguntas levantadas tornam-se a resposta para o bloqueio criativo. A mesma dificuldade que fez cabelos caírem torna-se material para a história. Por si esta já é uma solução bem pensada, mais impressionante ainda quando sua mágica se encontra nos meios, não apenas nos fins.
A fonte de tanta dor de cabeça para os dois escritores desta história é a mesma: adaptação. Ambos encontram um assunto estranhamente interessante e não sabem o que fazer com ele, como adaptar ele. Sendo assim, eles se vêem numa posição delicada: para chegar a algum lugar eles mesmos devem se adaptar. Como pessoas, como profissionais, como seres vivos. Perpetua-se assim a simbiose intelectual entre pessoas e obras diferentes, um diálogo tão amplo que extrapola o psíquico, o biológico, a flor, o livro, a autora, o roteiro e o roteirista. É uma daquelas coisas que posso realmente chamar de genial.
Então entra o terceiro ato e uma decisão controversa, que dá tanta margem para a defesa quanto para a acusação no seu veredito crítico. Parte do bloqueio intelectual de Kaufman envolve seu xarope irmão gêmeo Donald Kaufman (Nicolas Cage). Ele o incomoda o tempo com seu próprio roteiro de idéias originais já usadas em obras clássicas — incluindo a Marselhesa de “Casablanca” e o espelho quebrado de “The Apartment“. Tudo que sai de sua mente é o clichê do clichê, a verdadeira representação de roteiros comerciais desimaginativos, com um porém: Donald não existe fora do filme. Sua existência reflete a infame tendência ao clichê, a saída fácil para muitos roteiristas em crise. Seguindo nessa linha, o Charlie Kaufman que escreveu o filme ostenta sua versatilidade como escritor e faz uma bela crítica a este mesmo cinema quadrado. Sem dúvidas é uma crítica genialmente colocada, que só não é melhor por sacrificar a história em prol de sua alfinetada.
Gostando ou não de tal manobra, tiro o chapéu para Charlie Kaufman. Não sei se teria coragem de fazer o que ele fez, dado o preço pago, mas fica minha apreciação por sua ousadia. A controvérsia é grande e fica ainda maior por ser totalmente proposital, então minha crítica pode ser redundante para alguns. No entanto, fica mais do que claro para mim como os dois primeiros atos são de uma genialidade enorme, o que torna impossível engolir tudo aquilo ser descartado por uma crítica bem colocada, mas claramente inferior ao que veio antes.