Há quem diga que os filmes de Alfred Hitchcock são todos versões da mesma coisa. De certa forma, são exatamente isso. No entanto, há variação do comum crime misterioso na medida certa para tornar cada filme uma experiência renovadora. Em seu primeiro filme colorido, o diretor leva a idéia de variar o esquema mais a sério. “Rope” é o resultado dessa empreitada, um filme completamente experimental em termos de fotografia e direção, no qual Hitchcock tenta contar sua história em uma grande tomada.
Dois jovens amigos entediados com a inércia de suas vidas — exatamente o tédio que inspirou Hitchcock a fazer essa obra — decidem apimentar suas rotinas e estrangulam um colega em seu apartamento. De acordo com eles, o rapaz era intelectualmente inferior e estava tomando espaço num mundo já lotado de imbecis. Não bastando o ato hediondo, a dupla organiza uma festa e convida os pais do garoto, a namorada dele, um colega e um professor para jantar no mesmo apartamento do assassinato. Pra quê tudo aquilo? Brandon (John Dall) considera seu ato o crime perfeito. Todos esses planos são apenas detalhes para desafiar seu intelecto e provar seu ponto.
Acima de tudo, “Rope” é uma história interessante. Quando se fala nessa obra quase sempre apontam a direção e a edição revolucionárias como os pontos principais, sendo que toda a trama e conjunto de atuações já criam algo excelente por si. O assassinato é algo comum nos filmes de Hitchcock. A morte de alguém é muitas vezes usada como o estopim para a história desenrolar, mas aqui ela é mais do que um simples crime, ela tem todo um plano de fundo filosófico e maldoso por trás de si. O morto não é um espião que botou as mãos em informações confidenciais, é um jovem que morreu pelo simples capricho perverso de seus amigos. O garoto provavelmente não fez nada para merecer aquilo — além de nascer supostamente inferior, isto é.
Existe toda uma atmosfera pesada no ar, pois o espectador sabe mais sobre o mistério que vários personagens. Enquanto muitos convidados ficam totalmente alheios ao festim diabólico que acontece, outros suspeitam e investigam como podem a razão daquela ocasião esquisita. O segredo que o espectador sabe é compartilhado com apenas duas pessoas: aquelas que cometeram o crime. Mas o que torna essa relação interessante é como Brandon insiste em brincar com fogo ao, ocasionalmente, tocar no assunto de forma indireta. Não basta cometer um crime supostamente perfeito, ele tem que colocá-lo em risco para que a situação tenha graça. Ele provoca repetidas vezes seu amigo Phillip (Farley Granger) com alusões ao crime que só eles entendem. Entretanto, Phillip não digeriu bem o crime e mostra-se cada vez mais perturbado — conflito que é perfeitamente construído pelo ator Farley Granger. Felizmente, tanto os dois atores principais como James Stewart num papel coadjuvante entregam um grande duelo de perspicácia, no qual Stewart provocam seus alunos para ver qual deles perde a compostura e entrega o jogo. De certa forma, quem assiste acaba se identificando perfeitamente com a figura de Phillip, pois ele é o canal das angústias de quem sabe um segredo e não pode fazer nada quando outra pessoa arrisca estragar tudo. Querendo ou não, o espectador se vê envolvido diretamente na intriga dos protagonistas.
Por outro lado, toda a parte experimental do filme acerta tanto quanto erra. Pensando bem, é claro o motivo da ousadia do diretor ser muito comentada até hoje. Em 1948, o sistema de estúdio estava a todo o vapor. Quase todas as etapas da criação de filmes eram dominadas pelo coleira curta dos estúdios. Então surge algo como “Rope” e praticamente cospe na cara daquele conjunto fechado de regras. De fato é uma manobra ousada, que tem como benefícios exatamente o que se espera de tomadas longas e planos-sequência: um aumento da tensão. Não há um corte sequer para suavizar o clima, o espectador é forçado a acompanhar cada segundo. O problema é que o efeito máximo desse tipo de tomada é atingido quando seu uso não é restritivo como neste longa. Hitchcock se prende tanto à idéia de de gravar tudo de uma vez que parece esquecer dos benefícios do cinema convencional — como cortes, close-ups, planos médios e transições. Não vou negar, achei impressionante o filme funcionar da forma que funciona; dadas as circunstâncias, esperava algo pior. As cenas são cuidadosamente ensaiadas para que a disposição de elementos e atores em tela seja orgânica, não apenas uma câmera estática que grava o mesmo fundo com personagens diferentes. Ainda assim, os erros vêm à tona quando a direção, limitada pela forma da obra, entrega uma bizarra composição de cena. Por close-ups e cortes não serem uma opção, diálogos colocam os envolvidos quase em fila na frente da câmera para caber no quadro; em alguns momentos com todos de frente e até de costas uns para os outros. Por mais que seja conveniente para os planos do diretor, ficar minutos conversando em cima de um buffet não é algo que se faz por ai.
Por limitações técnicas da época, o filme inteiro não pôde ser feito em uma tomada, como planejado. A obra de 80 minutos é dividida em 10 seções de duração variada, pois os rolos de filme gravavam no máximo 10 minutos de filme. Para camuflar isso, Alfred Hitchcock coloca a câmera muito próxima de um objeto, escurecendo a imagem e escondendo o corte. Alguns poucos cortes ainda estão ali, mas o efeito planejado pelo cineasta ainda fica presente o bastante para trazer sua cota de prós e contras. Pelo menos a história e as atuações seguram a barra e não se deixam afetar pelas ambições de Hitchcock.