Imagine se os mamíferos do mundo tomassem conta do mundo como o conhecemos hoje e se tornassem os novos humanos. Esse é o mundo onde a cidade de Zootopia se ergue. Olhando por cima, muito dela se parece com uma cidade normal, mas alguns detalhes fazem a diferença. Os bairros não são meras divisões urbanísticas, cada um corresponde a um habitat diferente e contém animais que se dão bem naquele ecossistema. Ursos polares habitam a Tundralândia e roedores pequenos vivem numa Filadélfia em miniatura. Mesmo com essas divisões, porém, todos os bichos acabam partilhando o mesmo ambiente vez ou outra, especialmente no Centro da cidade, onde muitos deles trabalham.
O mais importante de tudo isso é que as típicas leis da natureza não existem em Zootopia. Leões não caçam zebras e Tigres não saem arrancando pedaços de outros bichos, eles se portam como uma pessoa normal, isto é, como um bicho normal daquele mundo. A coelha Judy Hopps vem da Toca do Coelho, uma região no interior longe da cidade grande. Ela é de uma família tradicionalmente agricultora, mas sonha em ser policial, profissão normalmente ocupada por elefantes, rinocerontes e outros bichos grandes. Indo contra todas as expectativas, Judy consegue seu posto na polícia e vê que nem tudo é como ela esperava, mas um caso grande pode ser a chave para a realização de seus sonhos como policial.
Antes de tudo, devo admitir que a idéia de “Zootopia” de recriar o mundo como o conhecemos hoje é simplesmente genial. Não tanto a idéia em si, pois até “Os Três Porquinhos” já colocou animais agindo como humanos antes do século XIX. O que realmente chama a atenção é a execução desta mesma idéia em escala gigantesca. Uma cidade dividida em ecossistemas, animais grandes e pequenos dividindo um metrô — adaptado para as diferentes necessidades dos passageiros — predadores e presas resistindo a seu papel biológico enquanto conservam algumas características naturais de sua espécies… É uma grande mistura de regras humanas com leis da natureza sem sentido algum que, de alguma forma, faz sentido. Loucura total? Sim. A Toca do Coelho, por exemplo, ganha dezenas de novos habitantes por segundopor conta dos hábitos reprodutivos dos coelhos. Analisando criticamente, é fácil ver como esse aumento é impraticável no longo prazo, mas nada disso importa de verdade. O filme trata desses assuntos de uma maneira muito séria: ele simplesmente os ignora. Pouco importa como diabos um rinoceronte coloca um uniforme de polícia, o espectador quer mesmo é ver Shakira representada como uma gazela cantando “Try Everything”.
Todos conhecem as características principais de um coelho ou de um leão. O filme sabe muito bem disso e usa este conhecimento para dar profundidade a seu mundo sem ter que explorar cada canto da cidade no maior estilo Discovery Channel. Um leão é tipicamente visto como um líder, uma figura forte, então o posto de prefeito acaba caindo em seu colo. Mas e um bicho preguiça, onde ele entra? No posto de funcionário público, é claro. Ser funcionário do Estado oferece muitos benefícios, incluindo a estabilidade. Infelizmente, às vezes isso significa um serviço mal feito, pois dificilmente alguém perde o emprego nessa história. Acredito que eu não seja o único a ter passado por uma situação incômoda com serviços estatais, então posso dizer que acertaram na mosca ao fazer esse paralelo, ainda mais quando a cena resultante é uma das melhores de todo o filme. Nas horas em que “Zootopia” vai além de uma caracterização espertinha e faz comentários sobre o mundo real é que a parte boa vem à tona.
No que se refere a essas referências, esta obra não comete erro algum e até inclui menções de coisas da cultura pop, como a já mencionada Shakira. “O PoderoSo Chefão” é uma grande inspiração para outro dos bons momentos deste longa. Nele, vemos várias versões de Luca Brasi — ursos polares usando trajes esportivos, colares dourados com paletós escuros e um bom par de olheiras debaixo dos olhos — servindo um chefão da máfia que não é nada menos que uma reprodução do grande papel de Marlon Brando. Na verdade, há uma infinidade de outras referências — como o iPod, o iPhone, FaceTime e até a própria Disney — que são sutis ou enraizadas demais na trama para serem mencionadas.
Por outro lado, “Zootopia” desaponta no que se refere a sua história. Ela simplesmente não tem o mesmo nível de dedicação que o universo criado para ambientá-la. O enredo em si não precisava ser complexo para ser bom, o que não quer dizer que está tudo bem relaxar neste ponto e entregar algo apropriado para filmes com roteiros genéricos. Sendo assim, a trama cria muito bem seus conflitos, só não sabe resolvê-los, então apela para aquela coincidência abençoada para tirar a protagonista de seus problemas. Pior que não executar bem o esqueleto do enredo é deslizar na hora de apresentar os temas mais profundos dela, essencialmente as mensagens que o filme passa além de visuais bonitos e referências bacanas. Aparentemente, o longa considera muito importante repetir inúmeras vezes que o espectador pode ser quem ele quiser, independente de quem ele for ou de onde ele venha. Tanto que acha necessário colocar essa moral em toda oportunidade possível: no diálogo entre pai e filho, entre filho e valentão da cidade e até na música da Shakira. Há ainda toda uma interpretação de cunho étnico sobre ser rotulado e discriminado, mas todo o potencial deste ponto de vista fica pequeno quando o longa favorece muito mais a perseverança a todo custo e em qualquer lugar como lema principal.
Para aqueles que estão perguntando se “Zootopia” é o novo “Divertida Mente“, digo que não. Os dois compartilham muitas características, inclusive alguns dos mesmos erros, mas no final das contas a animação do ano passado se sai melhor por sua idéia principal render uma história mais interessante. “Zootopia” ainda é uma experiência interessante, entretanto. Ela tem várias qualidades que não poderiam ser diferentes pelo produto ser Disney, como os visuais maravilhosos, mas falha por justamente não ser tão bom nos aspectos elementares do Cinema: uma história bem estruturada, que vai além de uma idéia boa.