Além de sua reputação como diretor épico, Orson Welles está entre os cineastas mais azarados de todos os tempos. Seu “Cidadão Kane” revolucionou a direção e o cinema americano da época, mas despertou a fúria de William Randolph Hearst — magnata da mídia que serviu de inspiração para o protagonista da história — que fez de tudo para abafar o filme e até, aparentemente, trouxe a derrota do longa no Oscar. Seu próximo filme, “The Magnificent Ambersons” sofreu abuso similar ao de “Touch of Evil” pelas mãos dos estúdios. Originalmente com cerca de 148 minutos de duração, esta obra foi editada e refilmada parcialmente a mando da RKO, o estúdio responsável, resultando no filme de 88 minutos que conhecemos hoje. Como cereja do bolo, todo o material não utilizado foi destruído, prevenindo que uma reconstrução pudesse ser feita no futuro. Apesar de todos as adições e cortes terem ficado bem claros no produto final, principalmente nas meias explicações e mudanças súbitas de entonação, a qualidade original prevalece em uma obra que resgata e aprimora toda a revolução de seu predecessor.
Um conto de época, esta história acompanha a estimada família Amberson e sua posição na pequena sempre crescente cidade de Indianapolis. Após uma introdução para contextualizar o espectador, George Amberson Minafer (Tim Holt) é apresentado: um garoto inconsequente que aproveita a fortuna de sua família para fazer o que quiser, mesmo que isso normalmente signifique não fazer absolutamente nada. Mais que simplesmente não gostar do jovem rapaz, o povo da cidade torce para que ele receba algumas lições da vida e amadureça de uma vez, parando, assim, de importunar a vida alheia.
Por mais que a hipérbole seja uma ferramenta muito utilizada na crítica cinematográfica, não houve exagero quando disse que as qualidades de “Citizen Kane” retornam tão boas quanto antes, se não melhores. Novamente com uma mansão em mãos, Welles usa sua câmera e aproveita todo o espaço de um dos sets mais sofisticados da época. A imagem não só perde seu caráter teatral ao ter uma composição mais complexa, como também usa o espaço de maneira muito mais inteligente, com movimento e pontos de interesse não centralizados, mas dispostos de forma que dêem vida ao quadro. A câmera não se limita a um certo número de ângulos e posições, ela viaja por escadas, assoalhos, tetos e qualquer espaço que possa acomodá-la, agregando valor técnico e qualidade de maneira criativa e revolucionária.
Em certo momento vemos o personagem de Tim Holt com a personagem de Anne Baxter andando de braços dados em uma festa na mansão Amberson; percorrendo os salões e corredores da sala, eles são apenas duas pessoas em um formigueiro de gente. Pessoas estão ocupadas à sua esquerda, outras estão provando um canapé à direita, enquanto alguns cruzam seu caminho à frente e outros ficam para trás em suas próprias conversas. Imaginando esta mesma sequência com técnicas típicas da Hollywood da época, teríamos uma tela com a gravação da festa projetada nela e os atores simulando uma caminhada. Talvez, no fim das contas, o resultado tivesse sido o mesmo, porém a execução merece atenção pela complexidade e cuidado da sequência. É um elemento que pode passar despercebido e, justamente por isso, é tão excelente. Não é através do exibicionismo que o sucesso é transmitido, é pela sutileza; sobra apenas a parte boa para ser aproveitada, os meios ficam por trás dos panos. É uma situação similar a do corte, ele é mais notado quando é mal utilizado, pois na maioria das vezes é tão fluído que nem chama atenção.
O problema da Hollywood clássica pode ser resumido em dois pontos: o controle fortíssimo dos estúdios sobre suas produções e a necessidade de fazer do Cinema um meio de escapar da dura realidade. Na concepção antiga, o público ia aos cinemas para esquecer dos problemas e ver reproduções de vidas perfeitas, do falado sonho americano. Embora esta seja uma política relativamente presente até hoje, especialmente nos filmes pipoca, ela se mostra problemática quando a história contada é uma tragédia, um conto de queda e de fragilidade. Quem assistir a “The Magnificent Ambersons” certamente notará que o tom puxa muito mais para o lado do desastre que para o do sucesso. Por mais jovial e divertido que George seja, é sua intolerância e teimosia que que fazem as engrenagens do enredo rodarem, esse é o foco que os estúdios perderam ou simplesmente ignoraram. Analisando superficialmente já se pode notar que certas partes da história ficam mal explicadas ou totalmente de fora. Especialmente no fiinal tudo torna-se meio confuso pela edição ter retirado muitos momentos melancólicos e não substituí-los adequadamente, deixando buracos na história. Ainda que a mudança para algo mais feliz esteja longe do ideal, pelo menos ela não deixa o enredo flagelado.
Para quem achou “Citizen Kane”, de certa forma, maçante, esta é uma boa obra para compreender os avanços do trabalho de Orson Welles. Sua história e narrativa mais familiar podem se mostrar mais amigáveis para um espectador que não tenha gostado tanto do trabalho anterior de Welles. Com certeza é uma ótima oportunidade para aprender um pouco mais sobre a parte técnica do Cinema, assim como um bom filme para as audiências que procuram algo bom para ocupar seu tempo livre.