Quem for familiar com os cinemas da Hollywood clássica estranhará o fato de “Death Proof” fazer parte de um “double feature”, um formato que exibe mais de um filme pelo preço de um ingresso. A prática teve início numa tentativa de manter a clientela nos tempos da Grande Depressão e entrou em declínio com o fim do sistema de estúdio, em meados dos anos 40. Hoje em dia o formato não teria fôlego para se manter, pois as audiências não têm mais tempo ou paciência para ficar quase 4 horas numa sala de cinema. Independente disso, Robert Rodriguez e Quentin Tarantino se juntaram para fazer “Grindhouse”, um “double feature” estrelando “Death Proof” e “Planet Terror”.
Não surpreendentemente, “Grindhouse” foi um fracasso comercial, o que levou os dois filmes a serem comercializados separadamente no resto do mundo. “Death Proof”, segmento dirigido por Tarantino, conta a história de Stuntman Mike (Kurt Russell), um dublê psicótico que usa seu carro para perseguir e assassinar jovens garotas. Além de motor, seu carro conta com reforços e equipamentos que o tornam à prova de morte: mesmo no pior dos acidentes, a sobrevivência é garantida; isto é, se você estiver sentado no assento do piloto.
Para começo de conversa, este é outro filme que tem trash como qualidade definitiva. O termo grindhouse se refere aos cinemas especializados em filmes apelativos e de baixo orçamento, que se diferenciavam dos cinemas comuns por ser mais barato e por ter um repertório diferenciado de obras em cartaz — qualidades estas que refletem as inspirações de “Death Proof”. Entretanto, o diretor procura transmitir essas mesmas características de uma maneira desimaginativa e casual; aplicando artefatos de imagem, granulação e graduação de cor na pós-produção para reproduzir as cópias de má qualidade dos cinemas grindhouse. Visualmente, toda esta estilização da imagem tem um aspecto extremamente forçado, não parece uma reprodução fiel de uma obra antiga e mau cuidada, apenas uma tentativa barata de tornar um filme típico de Tarantino em algo tematizado.
O problema com esta obra é que ela incorpora o significado popular — e incorretamente atribuído — do Filme B: completamente genérico, com pouco recurso, sem inspiração e feito nas coxas. O orçamento alto, em primeiro lugar, não condiz com as qualidades de filme B, pois os cenários podem ser tudo menos pobres em detalhe. Em particular, isso cria um contraste que não funciona muito bem com o ideal de querer reproduzir a atmosfera de baixo orçamento; explicitando ainda mais a artificialidade da estilização desta obra, da granulação aos artefatos de imagem. É quase o mesmo que querer fazer um filme mudo com uma câmera IMAX e 48fps, são duas eras diferentes que não combinam.
Curiosamente, para um filme de carro há muito diálogo para poucos roncos de motor; boa parte deste longa-metragem é composto de bate-papo casual em bares e botecos, provavelmente numa tentativa de fazer o espectador se familiarizar com as personagens antes que Stuntman Mike as mate. Não é que os personagens sejam desinteressantes, mas seu diálogo é simplesmente Tarantino em modo casual, com inspiração em falta e palavrões em alta. É um elemento muito pouco trabalhado para tomar tanto tempo de tela, ainda mais quando as cenas de ação são divertidas como as vistas aqui. Neste ponto, em contrapartida, o fator Tarantino faz sua parte muito bem pela violência exacerbada tornar sequências legais em algo a mais, o exagero, felizmente, tem um efeito diferente de estragar o diálogo alheio. O maior problema é esta posição de aborto entre modernidade e trash antigo influenciar até mesmo as partes boas — neste caso, as cenas de ação e o personagem principal. Isso pode ser visto, principalmente, na notável inconsistência do comportamento de Stuntman Mike, que muda de uma hora para outra sem explicação convincente e interfere na progressão da história por ela ser tão dependente de seus personagens.
É a indecisão à respeito de fazer este longa ser realmente trash que o fere, a pegada é transmitida apenas visualmente enquanto o resto da obra tenta acompanhar de maneira preguiçosa e descompromissada. Não é o relaxo que faz com que obras de baixo orçamento tenham destaque, mas o que se conquista com poucos recursos disponíveis. Quentin Tarantino até poderia ser feliz em sua empreitada, caso tivesse se esforçado para não fazê-la parecer superficial, qualidade que seu longa ostenta em quase todos seus aspectos.