Em uma visão mais crua sobre análises de filmes, pode-se dizer que uma obra é basicamente um conjunto de diversas qualidades. Filmes melhores reúnem mais características positivas, enquanto os piores têm qualidades menos atraentes em sua composição. Quando uma obra é caracterizada como material de vanguarda, revolucionária e como uma das mais íntimas de David Lynch, sabe-se que o conteúdo em mãos é algo no mínimo pomposo. Mas uma combinação deste naipe tem tanto potencial para ser algo genial quanto para ser um tremendo desastre. O saldo final de “Eraserhead” é algo entre esses dois extremos: uma obra confusa e aleatória sustentada por uma sofisticação técnica invejável.
É difícil traçar uma linha do que é real ou imaginário nesta obra. A atmosfera é distópica o bastante para nenhuma esquisitice parecer fora do lugar. O que se pode extrair como espinha dorsal de enredo é o foco na vida de Harry (Jack Nance), um homem que trabalha em uma gráfica e engravida uma garota sem querer. Dessa união casual nasce um filho deformado e mutante, cabendo a Harry cuidar da criança.
De todas as características apresentadas, a que de longe merece maior atenção é a capacidade de gerar suposições. “Eraserhead” não é o tipo de filme que as pessoas comentam apenas por ser extremamente bom ou extremamente ruim, mas que é assunto de conversas por não se entender muito do que se passa. Como qualquer outra arte, o cinema é altamente passível de interpretação, mais ainda quando ambiguidade e surrealidade são alguns dos ingredientes principais. É a partir desta abertura à suposição que as diversas teorias surgem. Cada pessoa traz sua interpretação dos eventos à partir do significado que atribui a uma série de eventos casuais. É como um quebra-cabeça com uma peça faltante ou ainda um conjunto de peças de quebra-cabeças diferentes colocadas juntas para formar uma gravura bizarra.
Em vez de usar a sutileza ou a ambiguidade para criar uma riqueza semântica, há um amontoado de imagens belas que se mantém ligadas por uma linha extremamente tênue. Entendo que a natureza surrealista tenta apresentar um formato muito próximo ao de um sonho ou pesadelo, porém mesmo se esta for a lógica aplicada, “Eraserhead” ainda sai prejudicado. Afinal de contas, os sonhos que realmente nos marcam são aqueles que revelam seu significado enterrado sob a justaposição de imagens estranhas. Aqueles que são estranhos sem nenhum sentido aparente podem até ter sua importância, mas permanecem apenas como objeto de teorias absurdas e frequentemente caem no esquecimento sem que se perceba. O material possui qualidades em quantidade suficiente para que os espectadores gastem seu tempo elaborando hipóteses, mas o que se vê aqui é um grande avatar do solipsismo de David Lynch, ou seja, uma série de imagens que só tem sentido real na cabeça do progenitor de tudo isso. Ao menos para mim, o diretor falha em criar um ambiente fértil para suposições bem embasadas, ao contrário de conjecturas.
Ser fonte de milhares de teoria não impede “Eraserhead” de ter seus próprios acertos. A parte visual ostenta uma das melhores fotografias em preto e branco de todos os tempos, rivalizando até mesmo filmes como “The Night of the Hunter” e “Sunset Boulevard“. É muito frequente ver um personagem sumir nos cantos escuros do preto e branco de alto contraste, tal como no Noir e no expressionismo alemão, sendo uma conquista triplamente bem sucedida. Primeiramente pela beleza visual propriamente dita; em segundo lugar por conta da criação de uma atmosfera aterrorizante; e, enfim, por esconder muito do orçamento baixíssimo desta obra. Através do uso da música, das imagens e do cenários, um clima singular é estabelecido. Se não fosse por ele, não haveria o elo que, por pouco, mantém a obra como algo unificado. Caso os eventos fossem considerados isoladamente do resto da obra, sua natureza só reforçaria a desconexão apontada aqui; porém este sentimento acaba não se concretizando totalmente por conta da construção de mundo de Lynch. Nada é esquisito demais para que seja considerado como destoante ou chocante gratuitamente. Até as anormalidades são bem vindas no mundo distópico do diretor.
A chave para uma experiência menos enigmática seria talvez uma ligação mais sólida que uma atmosfera sinistra, dando um bem vindo propósito mais claro à este alvoroço fantasioso. As teorias vão de lá a cá e englobam todos os tipos de visões diferentes, chegando até mesmo a tocar na vida pessoal do próprio Lynch. O cineasta se recusa a comentar muito sobre sua real intenção por trás de sua história e por conta disso talvez nunca se saberá o significado verdadeiro de “Eraserhead”. Respeito a decisão principalmente pelo fato de sua visão não inferir soberania sobre outras teorias. A idéia é deixar o filme falar por si mesmo. No caso de fracasso nessa tarefa, não seria uma entrevista qualquer que salvaria a obra.