Antes de qualquer coisa, devo dizer que se algum cineasta tiver a idéia de incluir crianças em seu elenco, este é o filme-referência de como usá-las de forma que não estraguem a obra. Ao contrário de exemplos como “Return of the Jedi“, que substitui criancinhas por alienígenas pigmeus e ainda assim os usa mal, ou “Jurassic World“, que tem um arco patético envolvendo as crianças e dois atores que não cooperam para amenizar a situação, este longa-metragem consegue utilizar seus personagens jovens de maneira natural e inteligente.
A história é contada através dos olhos de Scout (Mary Badham) e Jem (Phillip Alford), os filhos de Atticus Finch (Gregory Peck). Advogado de renome na pequena cidade de Maycomb, Atticus passa por uma situação situação difícil na América da era da depressão econômica. Além da pobreza, a Maycomb dos Anos 30 também possui uma característica controversa: há uma segregação explícita entre negros e brancos, com alguns membros da parte branca cultivando ódio pelos seus vizinhos negros. Mantendo sua fibra moral acima de estigmas sociais, o advogado aceita um fazendeiro negro como cliente, acusado injustamente de estupro por uma família branca.
Classificado muitas vezes como um drama exclusivamente de tribunal, esta descrição pode até enganar o espectador desavisado, pois a maior parte do longa não se passa dentro da corte nem aborda diretamente assuntos legais. O protagonista é um advogado e ocasionalmente faz comentários sobre seu ofício, mas nem de longe o longa pode ser resumido a isso. Uma maneira mais apropriada de sintetizar essa obra seria dizer que a mesma aborda a vida do advogado, em família e em trabalho, com um foco maior na parte do racismo forte da época. O ponto é que apesar de Atticus Finch ser o protagonista, sua história é transmitida através da percepção de seus filhos, da maneira infantil e descompromissada como seria apropriada a uma criança. Isso significa que entre as eventuais atualizações do caso do advogado, além de brincadeiras típicas da infância, vemos como os filhos tentam compreender alguns aspectos sociais não ensinados a eles tão cedo.
Em uma fase da vida onde a maior preocupação é ter de dormir cedo para ir para a escola no outro dia, pode ser difícil entender algumas situações mais complexas da vida adulta. Talvez não difícil, mas um garoto de 7 anos provavelmente nem enxerga um porquê de se preocupar com tais assuntos, ainda mais quando existe um mundo de brincadeiras para ser explorado. Ainda assim a exposição ao conceito de segregação racial em uma cidade como Maycomb ou pobreza em um país sofrendo crise econômica é inevitável, e esta interpretação juvenil é bem utilizada como ferramenta crítica sobre o racismo da época; sem contar que rende cenas interessantes por si, como quando a garota reage agressivamente a uma gíria racista que ela nem sabe o significado. O protagonista, apesar do título, age nessa história como um personagem de suporte para seus filhos, frequentemente guiando-os frente aos problemas diários, tal como uma figura paterna faz. Uma atuação sólida de Gregory Peck é a força por trás deste forte papel de pai, e mantendo uma certa constância representa perfeitamente o porto seguro que ele é para seus herdeiros. A única questão remanescente é que mesmo que a interpretação seja de um naipe altamente efetivo, ela ainda tem uma aparência cotidiana demais para sequer competir com o T.E. Lawrence de Peter O’Toole. Infelizmente no Oscar de 1963 a vitória foi para Peck e pela primeira vez o O’Toole teve a estatueta esnobada.
Uma característica que pode passar despercebida por sua sutileza, mas que tem uma relevância notável, é como a experiência proporcionada é leve apesar da temática pesada. Não é prática incomum cineastas colocarem cenas por simples valor de fascínio, como uma tomada de um ambiente visualmente espetacular sem muito significado além disso; e esta decisão não é exatamente ruim por ainda haver algum valor a ser extraído, por mínimo que seja. Crianças brincando na rua não é exatamente o que alguém espera em um filme tão aclamado, por conta do conteúdo já ser naturalmente um tanto desinteressante. Aplicar eventos tão rotineiros, e até aparentemente inúteis, a um contexto específico é sem dúvidas um avanço, enquanto dar utilidade a coisas pouco cativantes já é uma conquista mais considerável. A história ser apresentada de maneira tão descompromissada, com diversas cenas de caráter usual, funciona curiosamente bem com a tema da segregação social. Sendo exibido através de atitudes pequenas, pode-se ver como o racismo está enraizado a ponto de estar visível até mesmo em brincadeiras de criança, por exemplo.
Felizmente, a mensagem passada hoje não é tão potente por conta de diversos avanços nas políticas sociais; e creio que mesmo na época, seu impacto ainda fosse um tanto limitado pelas subversividades serem mais impactantes para o contexto da história, que se passa pelo menos 30 anos antes do lançamento do filme. Ainda assim, a importância para o enredo faz sua parte em proporcionar uma boa experiência cinematográfica, que mesmo com mudanças na cultura da segregação ainda mostra a força de seu argumento através de referência história.