Mais que outro filme pertencente ao meu gênero favorito, “Sunset Boulevard” transcendeu diversas expectativas. Não esperava nada ruim de Billy Wilder e William Holden, mas devo dizer que foi uma surpresa agradabilíssima por não parecer imediatamente atrativo numa primeira vista de sua página no IMDb, por exemplo. Mesmo assim, havia certa curiosidade por saber mais sobre tudo relacionado. Descobrir o que era a tal Sunset Boulevard, depois qual a importância da rua em Los Angeles e também para a narrativa. Soa bobo, mas é o tipo de filme que causa uma impressão mista num primeiro momento e desperta o interesse ao mesmo tempo. Um título desses não é o que se chama de óbvio, um que indica o conteúdo ou a premissa imediatamente, ele prefere referenciar o palco para as insanidades da trama.
Joe Gillis (William Holden) é um escritor e roteirista de filmes pequenos que gozou de certo sucesso por um tempo e se encontra numa fase péssima. Não há muito sobre o que escrever e os temas que surgem são ruins ou já foram produzidos. O dinheiro chega perto do fim e o desespero, perto do intolerável. Mais um dia de dureza o traz às portas da mansão de Norma Desmond (Gloria Swanson), uma atriz de estrondoso sucesso na época do cinema mudo esquecida tão logo que o som chegou aos ouvidos da audiência. Norma acredita que o mundo clama por seu retorno, deseja sua presença como nos velhos tempos e ela acredita que Joe pode fazer isso acontecer. Sem muitas opções, o rapaz aceita trabalhar com ela e aos poucos percebe onde está se envolvendo de fato.
Registro aqui “Sunset Boulevard” é um dos melhores filmes da história, sem mais. Eis o que se chama vulgarmente de um chá de como fazer um ótimo filme, uma lição pelo exemplo integrando majestosamente todos os aspectos relevantes da produção cinematográfica de forma perceptível. Elementos como atuações, fotografia, roteiro, mise-en-scène, figurino, trilha sonora, cenários, entre outros se interligam incrivelmente, nada se isola de nada na construção de um grande todo. Billy Wilder no roteiro e direção, Edith Head como a responsável pelo figurino e John F. Seitz, o cinematógrafo de “Double Indemnity“, de volta ao cargo. Com este elenco de categoria, dificilmente o resultado seria decepcionante e ele de fato não é. Sua qualidade marcante é como tudo se encaixa sem que uma área se exalte muito acima das outras, cada parte cumprindo sua função como deve no melhor que é aparentemente possível. É ótimo — e bem mais comum — quando se encontra uma obra em que a cinematografia faz pensar em quantos truques foram necessários para criar uma imagem ímpar. Esse poderia ser um caso de mera mediocridade sem pontos altos e é mais ou menos isso que acontece. Não há pontos mais altos, todos estão lá em cima.
Como um filme sobre cinema, “Sunset Boulevard” tinha muito potencial para se mostrar pretensioso ao usar elementos da realidade. Felizmente, o que se vê é justamente o contrário: há uma história magnífica em um ambiente que exala autenticidade por não fazer os toques reais serem referências pobres. Personalidades famosas atuam como si mesmos em papéis elementares para dar um toque de realidade a mais para a tragédia de Norma Desmond. Quando ela fala de trabalhar com um diretor famoso, é a Cecil B. DeMille que ela se refere e é ele quem entrega um dos golpes mais duros à ilusão criada pela personagem. Faz a diferença ser DeMille em pessoa ali, assim como é elementar ver que uma reunião de pôquer traz outros atores em baixa à casa de Desmond, como um envelhecido Buster Keaton. A atriz principal, Gloria Swanson, é como sua personagem e fez sua fama no cinema mudo entre 1914 e 1926, período que concentra a maior parte de seus trabalhos; também enfrentou dificuldades na transição para a era do som e teve uma vida amorosa relativamente movimentada ao colecionar seis maridos no decorrer da vida. Semelhanças poderiam se limitar a curiosidades e se mostram mais que isso, são características colocadas em perspectiva para que o espectador entenda como cada uma fez ela ser quem é.
O simples fato de vários atores que viram sua popularidade morrer com o tempo retornarem em papéis que abordam isso diretamente é genial. E, novamente, é mais do que uma escolha para agradar aos fãs, os atores claramente bebem da fonte de sua própria história de vida para fazer seu trabalho. Wilder também não perde a oportunidade de criar diálogos afiados sem medo de cutucar a ferida diretamente. A infelicidade da situação dos personagens encontra a imperdoável sola do sapato do Noir pisando e colocando ainda mais para baixo aquilo que já estava no chão. A ruína de Norma Desmond é uma tragédia de proporções colossais criadas por ela mesma e permite algumas liberdades. O design de produção faz a mansão mais parecer um mausoléu decorado por algum fã obcecado, as crenças e diálogos dialogam diretamente com a interpretação de Swanson e não permitem que seus exageros sejam percebidos como artificiais, e sim como frutos de sua insanidade. Ironicamente, a performance inesquecível dar um sopro de vida à carreira da atriz não foi o bastante para reerguê-la de vez e, assim, Gloria Swanson logo voltou ao ritmo vagaroso depois do sucesso estrondoso de “Sunset Boulevard”. Foram 11 indicações ao Oscar e 3 vitórias para Roteiro, Música e Direção de Arte.
Como se não bastasse o ambiente conflituosamente complexo com elementos da vida real, o que já cria um cenário forte por si, “Sunset Boulevard” se caracteriza como um Noir: o pessimismo e a frieza não perdoam personagens já sob pressão de seus fracassos. Ao mesmo tempo que Hollywood é chamada de fábrica dos sonhos, de recanto dos talentos e celebridades, o lugar em que as coisas acontecem e os sonhos viram realidade, há um outro lado bem menos atraente para isso. O cinema é uma arte, sim, e parece ser o caminho para a felicidade de muitos, isto é, quando as coisas dão certo. Caso contrário e para muita gente, pode ser a poeira dos sonhos destruídos, o fracasso de uma vida. Mostrar a Califórnia ensolarada de forma fria, não convidativa e suja, assuntos grandiosos como carreiras de cinema de um jeito sombrio é uma tarefa complexa realizada pela combinação de esforços. O derrotismo vai além da maneira como a história é retratada pelo diretor, além do tom da iluminação e dos cenários precários, os próprios personagens aceitam esta realidade mórbida e a abraçam. O que é impressionante, novamente, é como atores de verdade engolem a decadência real de suas carreiras e a representam na telona, um caminho diferente de se apoiar na nostalgia de filmes que vangloriam seus anos dourados.
O conto sobre a Hollywood que queria não só os olhos mas também os ouvidos do mundo inteiro, sobre o cinema que se tornou pequeno para uma atriz tão grande e sobre a decadência de uma carreira, tudo contado de maneira não menos grandiosa do que o conteúdo pede. “Sunset Boulevard” é uma das obras mais magníficas da história, perfeitamente concebida, criada e executada, tudo sob o incrível olhar pessimista do gênero Noir. Da mesma maneira como já ouvi diversas vezes, parece que a pancada é sempre mais forte quando vem de surpresa. Neste caso, isso seria um leve elogio, pois o choque de presenciar tamanha qualidade foi tanto que quase me sinto mal de criar expectativa no leitor que ainda não viu essa obra prima.