Baseado no livro homônimo de Gillian Flynn, autora e roteirista do filme, “Gone Girl” é outro filme dirigidos por David Fincher, a cabeça por trás de sucessos como “Clube da Luta” e “A Rede Social”. Considerado uma adaptação muito fiel do livro para o cinema, o filme foi apreciado pela autora por Fincher não tentar transformar o livro em algo que ele não é. Até o momento, o longa está sendo bem recebido pelo público e pela crítica.
Traduzido para o português como “Garota Exemplar” — tradução de “Gone Girl” em algum universo paralelo — o título pode dar a impressão que este é algum sucessor espiritual abortado de “Segundas Intenções”, mas logo surge uma explicação sensata para o tal “Garota Exemplar” do nome. Mesmo justificando a escolha, poderiam muito bem ter escolhido “Garota Desaparecida” ou “Garota Ausente”. De qualquer forma, a história acompanha de maneira não linear a história de um casal, que se mantém relativamente feliz até o momento em que a esposa some sem deixar muito aviso. Era costume entre os dois fazer uma caça ao tesouro a cada aniversário de casamento, data que tem sua importância na investigação do desaparecimento. Porém as coisas complicam quando a situação aponta Nick Dunne (Ben Affleck), o marido, como suspeito do desaparecimento da própria esposa.
No começo de tudo, o filme nos entrega uma vasilha completamente vazia e aos poucos vai enchendo a mesma com um pouco de tinta de variadas cores: um pouco da cor do passado do casal com um pouco da cor do presente, que se misturam e formam uma nova cor; consequentemente criando uma nova impressão sobre cada personagem e situação. Trabalhando inicialmente apenas com o preto no branco, o filme começa bem heterogêneo e aos poucos vai se tornando cinza, voltando ao estágio de antes e mudando as concepções ad infinitum. Ao contrário de outras obras, esta não é um estudo sobre a moralidade dos personagens. O que acontece é uma constante transformação das impressões do espectador sobre os personagens enquanto eles continuam quem sempre foram desde o começo. Facetas isoladas de contexto geral são mostradas, cada uma construindo uma nova concepção até a hora que todas se juntam e surpreendem quando mostram sua face verdadeira.
Se posso dizer, algo que merece mérito é a incrível capacidade de me fazer querer socar todos os personagens no meio da cara, ao menos em algum momento da trama. Independente do personagem, alguma hora este será representado como alguém que pede um belo murro simplesmente por ser um grande cretino. As pessoas criadas para serem chatas conseguem ser tanto quanto poderiam sonhar em ser, à medida que alguns personagens, ao menos, têm essa aura de canalhice perdoada pelo próprio enredo quando outras partes de suas vidas são mostradas. Curiosamente, nada disso é gratuito. O exagero da escrotidão nessas figuras é uma crítica ao próprio conceito de pré-julgamento. Representar alguém como cretino e logo depois quebrar essa noção é, num sentido moral, uma bela puxada de tapete de quem estava cheio de convicções sobre o elenco.
Com 149 minutos de duração, “Gone Girl” não é um longa-metragem de duração usual, mas ainda assim está longe de ser uma obra que precise de um intervalo para esticar as pernas. Como mencionado antes, a narrativa não é algo estritamente linear, o que dificulta a previsibilidade de direção da trama. Perto de 60% de duração. o filme dá dicas que vai acabar ao explicar boa parte de seus mistérios e talvez por esse motivo parece se estender mais do que deveria. Não há nenhuma sequência seja notavelmente desnecessária para ser descartada, mas esse clima de final de filme apresentado antecipadamente dá a impressão que tudo é um pouco longo demais.
Chega um certo ponto em que aquela vasilha dada ao espectador tem tantas cores diferentes que fica difícil distinguir umas das outras, quem dirá separá-las. Ao longo da complicação da trama, que é criada ao longo dessas duas horas e meia de filme, há uma crescente tensão sobre o que vai acontecer a seguir. O problema é que a trama vira uma bola de neve tão grande que pará-la é uma tarefa homérica. Quando finalmente a poeira começa a assentar as explicações começam a aparecer e com elas as incongruências. Algumas das soluções dadas pela trama se mostram muito fora do aceitável, muito longe de qualquer dimensão palpável. Claramente acontece a situação clássica onde acontecimentos improváveis e atitudes fora de personagem são colocados por simples conveniência da trama, comprometendo o essencial embrulhar dos fatos num filme sobre mistério.
O filme começa muito bem e se mantém excelente até meados de 60% da trama, mas alguns trechos — como a conclusão — simplesmente falham em ser estruturalmente sólidos ou ao menos plausíveis o bastante para serem aceitos naturalmente. Mesmo assim, o filme mantém uma qualidade alta por muito tempo o que previne um veredicto mais baixo.