Vendo alguns filmes do diretor David Cronenberg, logo se nota certo padrão de abordagem temática: a tendência de tratar de temas sexuais e eróticos, além de uma tensão psicológica, sempre se mostram presentes de alguma forma. “Shivers” não é diferente e parece ser o mais perturbador e erótico do diretor, mas de uma forma interessante e bem estruturada. Este é o filme de estreia de Cronenberg, que foi bem recebido pela crítica e gerou forte controvérsia em alguns círculos.
Vários filmes lançados ao longo da história do cinema são descritos como freudianos ou frutos das obras da psicanálise, mas poucos escancararam a essência da teoria de Freud tão fortemente quanto este longa. A trama — na medida certa para preencher os 87 minutos — se ambienta em um prédio de luxo, o estilo americano em forma condomínio. Mas tão logo que as coisas são perfeitamente apresentadas uma praga de parasitas atinge o local, transformando as pessoas infectadas em predadoras sexuais.
Na obra de Freud, o autor aborda fortemente a relação da sexualidade com o comportamento humano, apontando que a libido é a energia que move os seres humanos. Aprofundando um pouco mais na teoria, era também dito que muitos desejos sexuais eram reprimidos desde a infância, repressões impostas pela própria sociedade, de certa forma. Fenômenos como o Complexo de Édipo, que envolve o desejo do sujeito por sua própria mãe, são apresentados como frutos culturais da vida em sociedade. Essa repressão acaba resultando em uma série de sintomas mais comuns do que normalmente acham. É com uma espada afiadíssima que Cronenberg cutuca esse ponto com seu singular enredo.
Tomando o próprio ambiente como ponto de partida pode-se ter uma idéia de como o cineasta constrói sua odisseia erótica. A introdução deste lugar no formato de comercial de televisão diz um pouco sobre isso: um lugar isolado da cidade grande, do caos urbano e do barulho insuportável equipado com piscinas, quadras de tênis e campos de golfe; tudo disposto num formato semi-sustentável, com consultórios médicos e odontológicos prontos para atender os moradores. Efetivamente o lugar perfeito para acomodar todas as necessidades e luxos do ser humano. Tudo funciona de forma prática, sem confusão e com todos vivendo em paz até a hora que a pandemia dos parasitas quebra a ordem estabelecida.
Se em sua teoria Freud diz que a repressão dessas pulsões sexuais é o preço que se paga para se viver em sociedade, na teoria do diretor tudo o que basta para destruir esse equilíbrio é um verme. Mais especificamente, um indivíduo infectado só precisa de um pouco de contato para disseminar a liberação dessas pulsões sexuais. Lendo a sinopse fiquei esperando que o diretor seria um pouco mais ousado na questão do tabu sexual. achei que o parasita passava pelo contato sexual literal. Mas vendo que a transmissão acontece de uma maneira mais característica de filmes de Terror, devo dizer que fiquei um tanto decepcionado. Em vez de criar um certo clima erótico, ou até mesmo sexualmente violento, temos uma coreografia de caráter bem amador. Em vez de tentar ao menos fingir que o agressor tenta seduzir ou até estuprar sua vítima os atores se amontoam e se empurram na esperança que o espectador ache tudo aquilo minimamente palpável.
Mesmo assim, a idéia geral não deixa de ser impressionante. Através de uma orgia monstruosa, que deixaria o pai da Psicanálise no mínimo espantado, a destruição da estrutura perfeita da sociedade que abdicou de pulsões primordiais é um tanto fantástica, se não absurda. De seu jeito estranho e meio atrapalhado, Cronenberg faz uma releitura da teoria psicanalítica e surpreendentemente não distorce as coisas gratuitamente. “Shivers” consegue combinar um clima levemente assustador com uma crítica social pesada, pulando toda a parte da fundamentação teórica e indo direto na jugular das falsidades sociais da visão do diretor. Interessante ainda é o fato dos caos não ser limitado à uma visão conservadora. Mesmo que os métodos de transmissão sejam estranhos, o parasita não liga para convenções sociais e chega a incitar desejos homossexuais nos indivíduos; algo que na minha opinião foi um toque peculiar e inesperado da parte do cineasta. Especialmente porque não se prende aos tais padrões sociais que o longa tenta quebrar.
“Calafrios: Freud Sem Limites”, digo, “Shivers” é um filme esquisito. Ele faz o espectador se questionar mesmo quando tudo está perfeitamente explícito e chama a atenção em vários momentos de excentricidade, mas acaba falhando em criar um desfecho a par do resto do filme. O mesmo acontece com a ambiciosa idéia principal. Ela tem uma base excelente e carece de uma representação realmente boa, especialmente quando efeitos especiais fracos fazem os vermes parecerem cocôs sexuais. Mesmo com seus deslizes, experiência é válida pelos pontos de vista singulares de Cronenberg.