Jogadores de “Fallout: New Vegas” certamente reconhecerão o título do filme de uma das músicas que tocam nas rádios do jogo, que no caso é o próprio tema deste longa-metragem. Odiada por alguns, pelo número de vezes que é tocada ao longo do jogo, e amada por outros que não se incomodaram, “Johnny Guitar” felizmente vai além de ser apenas uma música de Peggy Lee. É um faroeste que chama a atenção entre tantos outros filmes bons, e não só pelos motivos que se pode esperar.
Dirigida por Nicholas Ray, também diretor de “Rebel Without a Cause“, esta obra se destaca entre típicos filmes de Faroeste por seus elementos de dramaticidade, simbolismo e inversão de papéis. Ousado em como aborda temas como a sexualidade e o papel da mulher, este longa pode ser interpretado de várias maneiras. Estes, por sua vez, vão desde uma abordagem dos papéis do homem e da mulher no universo do Faroeste até uma crítica à caça às bruxas Macartista que ocorria na época. “Johnny Guitar” é uma obra que superou a recepção morna inicial ao ser redescoberto anos mais tarde pela crítica francesa e até hoje permanece digno de atenção. Sua inovação vem acompanhada de qualidade e eficiência.
Joan Crawford é colocada no centro da trama como Vienna: a firme protagonista detentora de uma determinação de ferro. Ela é apresentada como a batalhadora proprietária de um bar isolado da cidade, porém com ótimas perspectivas para o futuro, já que uma ferrovia passará perto de seu estabelecimento. Isso atrai também os olhos invejosos de outros indivíduos, os quais aproveitam a primeira oportunidade para antagonizar Vienna. Eles desafiam diretamente os valores e atitudes que a fizeram crescer na vida sem muita preocupação com os argumentos que os impulsionam. Para eles, acreditar no que é conveniente já é o bastante.
O brilho desta obra está definitivamente na revolução das convenções típicas dos Faroestes, vista na apresentação da mulher em um papel mais proeminente e relevante do que o de sempre. Já é uma mudança bem drástica do papel feminino encontrado em “Red River”, por exemplo, no qual uma moça literalmente suplica para o protagonista bater nela para que ele a escute. Não só isso, como também qualquer outro trabalho do gênero que mostre a mulher efetivamente como prostituta, objeto ou coadjuvante. Subversivo no aspecto da inversão de papéis, o filme apresenta mulheres como as líderes de seus respectivos círculos sociais. Enquanto isso, homens se mantêm presentes ocupando posições secundárias e suplementares, apesar do nome título derivar de um dos personagens masculinos chamado Johnny Guitar. Ao contrário da maioria dos Faroestes, quem dita as regras não é o caubói, e sim a mulher que seria apenas uma acompanhante de menor importância. Mais especificamente, são duas mulheres que tomam a frente de “Johnny Guitar”.
Vienna está num pólo, solitária e consciente do desprezo direcionado do resto das pessoas. Oposta a ela está outra mulher igualmente poderosa: Mercedes McCambridge no papel de Emma Small, a detestável e absolutamente estúpida vilã de “Johnny Guitar”. Sobre ela, digo que sua atuação foi especialmente efetiva porque adquiri um ódio fervoroso por sua personagem ao longo do filme. Sua mera presença já era motivo pra me deixar incomodado. Marchando cena adentro como se mandasse em algo, Emma Small não esconde que a fonte de suas suas crenças era exclusivamente, especialmente e inconfundivelmente a burrice. Mais do que isso, Joan Crawford faz uma frente perfeita para provocar conflitos entre as duas. Sua mera existência, construída na base da sensatez de quem já olhou para dentro de si e aceitou o que viu, já fornece conteúdo para as faíscas voarem. Certamente não falta determinação crua das atrizes para tornar tanto o atrito quanto suas posições de poder elementos críveis.
Mas não só de revoluções este filme é feito, uma vez que elementos clássicos do gênero estão presentes. A expansão da civilização e o estudo da moralidade podem ser encontrados na própria razão que faz Vienna ser mal vista por todos. De algum jeito, a imoral, a detestável, a indesejada e a maculada foi mais esperta que os tais cidadãos de bem. Não só isso, como ela chega a apresentar uma ameaça real quando ergue-se de sua posição rebaixada imposta pelos outros. Mais do que apenas colocar mulheres na linha de frente, “Johnny Guitar” conecta as partes tradicionais à figura de Vienna, usando=a como o elo entre conflito, subversão das convenções e aplicação dos conceitos clássicos.
Há ainda o próprio Johnny Guitar, o pistoleiro que vai de guerreiro a bardo e permanece presente durante o filme todo como um coadjuvante. Um caubói em crise, ele se vê tentando se firmar como músico ao mesmo tempo que está preso ao contágio de presença forte de Vienna. Como sempre, ela significa uma oportunidade ambivalente e contrastante: um novo futuro e uma volta ao passado. Um dos relacionamentos amorosos de Vienna, Johnny é chamado por ela para fazer parte de seu novo empreendimento, mesmo que seu trabalho seja tão definido quanto a moradia de um caubói sem rumo. Voltar para ela significa uma montanha de coisas que ele não consegue processar direito. Logo, ele acaba retornando aos hábitos antigos de pistoleiro e, assim, protagonizando boa parte das cenas mais agitadas. Embora Johnny Guitar seja tão habilidoso com um revólver quanto com um violão, isso não é o bastante para compensar a falta de capricho nessas cenas de tiroteio. De longe a pior parte do filme, elas cumprem sua função no limite do aceitável. Ação certamente não é o foco do filme, o que não justifica executá-las sem capricho.
Uma história de morais íntegros construídos por meios duvidosos, “Johnny Guitar” sem dúvida se sobressai dentre os faroestes não só por sua ousadia temática mas também pela qualidade na execução de sua trama. Por outro lado, o filme falha um pouco por não apresentar seu clímax tão bem quanto o prepara, sendo um pouco sabotado pela ação decepcionante seguido de um desfecho no mínimo brando. Nada que arruíne a experiência, porém certamente é um ponto negativo em comparação com o resto do longa. Espectadores que esperam tiroteios alucinantes, fiquem avisados.