Devo admitir que minha primeira impressão de “Emilia Pérez” foi positiva. Não que ela tenha qualquer coisa a ver com uma impressão da obra como ela é, eu apenas havia passado pela FNAC de Nogent-le-Rotrou, no interior da França, enquanto fazia meu primeiro passeio de carro em busca das pequenas cidades com algo interessante; leia-se, sebos e algum lugar onde eu pudesse comprar meus discos. Indo em direção ao caixa para pagar com meu francês de educação infantil, vejo um estande com DVDs, Blu-Rays e Blu-Rays Ultra HD de um filme chamado “Emilia Pérez”. Eu gostei da arte, achei chamativa, e o fundo preto com as fotos dos atores e uma estética tipicamente mexicana me chamou a atenção. A princípio, achei que talvez fosse algo como um filme de Ação chicano exagerado e ultra-estilizado — para notar como andava por fora do circuito comercial e das premiações nos últimos tempos. Bem, foi essa a minha primeira vista relativamente positiva sobre a obra. Talvez a única, também.
Não fazia idéia de que na verdade seria um musical dirigido por um francês que se passa no México e aborda questões modernas. Todas elas. Em um espaço de 132 minutos. Pois bem, ainda fui de mente aberta o suficiente para escolher assistir à obra no dia do meu aniversário, sem saber o que me aguardava, claro. A onda de repúdio e as polêmicas ainda não haviam começado, Karla Sofía Gascón não havia feito comentários questionáveis sobre muitos assuntos, e não havia nascido uma rixa com “Ainda Estou Aqui ” e toda a nação brasileira pela competição nas categorias do Oscar e pelos outros comentários diretos de Gascón sobre a equipe do longa brasileiro. Nem meus amigos haviam assistido ainda e distribuído uma enxurrada de meias estrelas no Letterboxd. É curioso entrar numa sessão sem expectativas e sem saber de muita coisa, algo raro hoje em dia quando é possível saber a opinião de conhecidos e desconhecidos sem nem mesmo falar com eles.
A história acompanha, Rita (Zoe Saldana), uma advogada que em seus 40 anos ainda não atingiu o prestígio e o sucesso que gostaria, apesar de sentir que tem é pouco valorizada e competente demais para seu cargo atual. Sem muitas esperanças de sucesso, tudo muda quando uma oportunidade peculiar cai em seu colo: um cliente específico busca seus serviços em troca de uma pequena fortuna para ela nunca mais se preocupar com dinheiro. O cliente? O líder de um dos maior cartéis do país. Seu pedido? Ajudá-lo a falsificar sua morte para ele ter uma nova identidade em um novo lugar como a pessoa que sempre quis ser.
Até aí, teoricamente, não há nenhum problema. Não vou dizer que é a sinopse mais inovadora ou cativante por aí, ao mesmo tempo que não é imediatamente passível de críticas por qualquer razão porque, afinal, abre portas para uma possível boa história. Infelizmente, o sentimento que prevalece ao final do filme é que a história, apesar de realmente não ser a pior do mundo sofre por conta de uma narrativa medíocre, ou seja, ela é contada de forma pobre e desinteressante e que consegue piorar o conteúdo objetivo, por assim dizer. Claro, para alguém que não gosta de musicais isso já seria o caso automaticamente, já eu não tenho nada contra e até gosto muito do gênero. No melhor dos casos se atinge uma mescla consoante entre duas artes diversas, ainda que quase sempre juntas porque quase todo filme possui uma trilha sonora, na qual a música adota uma posição de maior proeminência. No pior dos casos, há “Emilia Pérez”.
Digo isso porque, em primeiro lugar, é um musical sem músicas boas. E nem entro em mérito de ficar com a música na cabeça ou sair do cinema cantarolando, pois vários musicais incríveis possuem músicas das quais não lembro completamente, trata-se de durante a sessão ouvir as canções e assistir às performances e não se impressionar nem um pouco. Certa vez vi uma palestra de Andrew Stanton, da Pixar, falando sobre histórias e narrativas, e um de seus pontos principais era criar com “Toy Story” uma história que não seguisse o padrão então atual das animações de ser um musical, de ter uma canção “Eu Quero”, de ter um vilarejo feliz, e de ter um vilão. Outra coisa que ele diz é que histórias possuem diretrizes, não regras imutáveis. É por isso que filmes como “O Rei Leão” e “A Bela e a Fera” são até hoje reconhecidos por sua qualidade ainda que sigam as diretrizes acima: o primeiro tem “O Ciclo Sem Fim” e “O Que Eu Quero Mais É Ser Rei” como exemplos claros de vilarejo feliz e canção “Eu Quero”. Até mesmo “A Noviça Rebelde” estabelece já na primeira canção o plano de fundo e as vontades da personagem e é um excelente musical. “Emilia Pérez”? Claro que não perde a chance de trazer uma música narrando em detalhes quão frustrada a protagonista está, quão subvalorizada ela se sente, o que sua idade tem a ver com isso, sua opinião sobre seus chefe e como ela quer ser reconhecida pelo seu valor
“Emilia Pérez” tenta e não consegue realizar o mesmo. São evidentes suas aspirações, transparentes até demais, de forma que é possível ver estampado o que se busca atingir com aquele número específico sem a fluidez ou a beleza de ser enganado por uma agradável melodia e uma voz embalando a audiência em uma jornada de sentir e não de analisar. Não cabe só às músicas realizarem esse feito, mas qualquer artifício escolhido que evoca o escrutínio em vez do sentimento ou da imersão não está funcionando. Convite ao pensamento? Perfeito. “Emilia Pérez” apenas tentas muitas coisas, abordar muitos temas, alguns até diriam abordar todos os temas, e atinge apenas a superfície, seja errando fatos, apresentando um ponto de vista tipicamente cinematográfico de uma forma que muitos chamam de hollywoodiano. Não à toa a comparação com “Crash” tem sido vista por aí, outro filme que busca falar de tantas coisas e fala tão pouco.
Essencialmente, a história parece mais uma junção quase desconexa de trechos de história distintos escritos sem a menor preocupação com verossimilidade ou polimento, por assim dizer, e que apenas funciona porque os números musicais estão ali para cobrir mediocremente essas lacunas. Ou isso, ou reforçar temas que já estão mais ou menos claros para fins dramáticos, atingindo apenas o resultado inferior melodramático, uma forma de embelezar o mediano sem elevá-lo de forma alguma. Conforme “Emilia Pérez” perde o espectador, mais claro fica como o roteiro é cru, básico e simplista sem ao menos ter o charme artesanal do baixo orçamento bem realizado. A estética não esconde o orçamento alto e a execução, por vezes elogiada por ter um charme de novela mexicana, tem apenas as piores qualidades desta. Não erra tanto a ponto de ser incompreensível, mas chega a ser quase cômica de quão tosca e atrapalhada se apresenta. Nunca um filme dependeu tanto de um “fade to black”.
Para uma experiência de aniversário, mostrou-se um tanto infeliz. Talvez se nesse caso específico eu soubesse o que me aguardava, talvez teria escolhido “Ainda Estou Aqui” para fechar minha noite melhor. Bom, também não vou exagerar e dizer que acabou com meu dia, que foi muito bom num geral, porém digo com segurança que saí do cinema coçando a cabeça e tentando entender mais ou menos o que tinha acabado de ver, diferente de outros filmes ruins em que minha reação foi de raiva e frustração. “Emilia Pérez” ainda dá conta de acertar o suficiente para não causar um horror completo, poucos momentos de fato comoventes e atuações que por vezes sobrevivem à bagunça ao seu redor são destaques. E é isso. Em suma. Queria ter mais motivos para elogiar a obra e eles não existem.