Assim como ano passado, não planejava assistir a nenhum filme da Mostra Competitiva do Olhar de Cinema. Quase sempre foi uma experiência não muito recompensadora e quase revoltante, já que quase sempre a qualidade deixa a muito desejar. Subjetivamente, é claro, porque sempre há quem goste dos filmes e dê quatro estrelas — o máximo — na votação ao final da sessão, e também porque não sou dono da razão. O que aconteceu foi que fui buscar meus dois ingressos do dia, cujas sessões seriam apenas à noite, e um amigo meu com a moça do guichê falaram: “Só esses?”. Respondi que sim, o que os levou a sugerir assistir a mais um filme que começaria às duas da tarde, um que havia sido muito bem comentado e de que meu amigo havia gostado bastante. Esse filme era “Praia Formosa”, uma produção Luso-Brasileira.
A origem do projeto, de acordo com a descrição no site do festival, pode ser rastreada a uma pesquisa realizada sobre a zona portuária do Rio de Janeiro, ao passo que o filme foca no Cais do Valongo, local de desembarque de escravos e que se tornou um mercado para a comercialização deles. Para isso, a praia que havia ali recebeu obras para receber um ancoradouro e depois, quando o tráfico transatlântico foi proibido, foi aterrado para se tornar o Cais da Imperatriz e receber a futura esposa do Imperador Dom Pedro II. Anos mais tarde, uma nova obra enterrou esse novo cais como parte de uma reforma geral da zona portuária do Rio de Janeiro.
No começo do Século 20, o local também se tornou um ponto muito frequentado pela população negra da cidade e chegou a ser apelidada de Pequena África, tal qual uma Nova York com seus distritos populares de Little Italy e Chinatown. Tudo isso foi redescoberto em 2011 quando foram feitas escavações durante a revitalização da área, nas quais foram revelados vários artefatos históricos da época, revelando um rico sítio de cultura enterrada. É a partir dessa pesquisa e desse vasto contexto que “Praia Formosa” parte para contar uma história sobre apagamento de culturas e a marginalização de um povo negro que mesmo depois de liberto, com o fim da escravização, teve parte de seu legado escondido sob toneladas de cimento em nome do progresso; é uma história sobre reencontrar origens através de visitas pelo tempo e, assim, encontrar lugar no mundo moderno.
Domingas (Lucília Raimundo) é uma moça da República Democrática do Congo que se encontra numa Casa Grande tipicamente carioca, um palacete onde vive sob regime de escravidão de sua Senhora Catarina (Maria D’Aires). Mas há algo errado: as luxuosas paredes e móveis do lugar caem em podridão subitamente, as coisas mudam e a casa passa a se tornar um avatar de decadência. Até Domingas passa a retomar seu nome africano Muanza e se encontra num lugar novo, mas que é o mesmo. O tempo passou e agora, num Rio de Janeiro moderno e diferente, ela se vê presa entre dois tempos.
Lendo isso de uma forma literal, daria para pensar que “Praia Formosa” é uma ficção científica contando uma história relativamente conhecida dentro do gênero. Mas é claro, sendo um filme culto e de muitas aspirações, não seria algo tão óbvio assim. A diferença é que aqui isso funciona menos como catalisador de enredo e mais como uma ferramenta para desenvolver argumento sem ter que explicar a lógica por trás do roteiro. É o que é e não há problema nisso. Trata-se de nada mais que uma licença poética que não chega a ofender como uma desculpa ou um conveniente corte de caminho. É dessa abertura de portas que as possibilidades de brincar com mudanças de cenário surgem, uma forma de permitir que a direção de arte trabalhe silenciosamente no plano de fundo. E na ausência de muitos diálogos, “Praia Formosa” depende muito de elementos visuais para construir sua narrativa. E funciona, pois as transições sutis entre épocas e a forma como se estabelece uma relação semântica através dos saltos mostra como além de apagamento de culturas, também se trata de expor quanto esse império opressor apodreceu e caiu em desgraça, embora ainda possa ser sentido.
E é essa a relação por vezes curiosa que “Praia Formosa” cria: uma dualidade de passividade e rebeldia, entre opulência e putrefação. Com a confusão temporal, alguns se perdem e constroem uma imagem que nunca se apresente totalmente óbvia. Talvez parte dessa idéia seja fazer os personagens se moverem devagar o tempo para talvez soar mais contemplativo nas ações. Ou talvez para permitir que os detalhes de figurino e cenário possam ser mais bem percebidos. Já isso não funciona tanto. A narrativa visual não sustenta uma história inteira e chega uma parte em que se sente falta de algo mais. Não necessariamente de satisfação ou explicações, mas é exatamente isso que “Praia Formosa” fornece quando quebra completamente a identidade que construía, trazendo quase todo tipo de exposição narrativa numa forma de depoimento documental enquanto até então mal haviam sido ditas uma dúzia de palavras. Não encaixa e é tão suave quanto uma fratura quando entra num momento crítico que faz o espectador questionar suas escolhas. Do nada o filme quase mudo se torna fluente.
A própria questão do filme ser tão devagar que até seus personagens são lentos nas ações mostra que há uma rachadura visível na linguagem de “Praia Formosa”. Esteticamente é muito agradável, funciona em momentos e funcionaria ainda melhor com uso mais esparso, porém é utilizado em tanto excesso que fica a impressão de que o filme teria uma hora a menos se todo mundo se mexesse em velocidade normal. Também parece que ao final, há um tipo de desespero no ar quando cenas gratuitamente lentas ou só gratuitas passam a ser mais couns. Mesmo possibilitando que a Direção de Arte brilhe e tenha um lugar mais à frente do palco, a narrativa visual carece de substância o suficiente, de material para preencher a história e enriquecer a mensagem, na falta de melhor termo. Ela parece ser resumida ao produto de uma comparação direta, com quaisquer dúvidas sanadas por um monólogo extenso que vem do nada e dá algum norte para a experiência.