Fazia um bom tempo que queria ver “Mulholland Dr.” e não o fazia por motivo algum. É simplesmente muita coisa para assistir. Sempre falta alguma coisa de algum diretor, a última parte da carreira de Billy Wilder, os filmes de Rainer Werner Fassbinder, os vencedores do Oscar de Melhor Filme e uma infinidade de séries renomadas com sete temporadas. Mesmo assistindo a mais de 100 filmes por ano, muita coisa fica de fora entre lançamentos e clássicos e outros vistos mais de uma vez. Acabou que esse trabalho de David Lynch ficou para trás e não é o único, pois ainda há pelo menos meia dúzia de outros dele para assistir. Nunca acaba.
Esse é um filme particularmente estranho. Nada surpreendente, considerando o diretor, mas que dificulta escrever uma premissa exata já que não se sabe o que está acontecendo até perto da primeira hora. O mais próximo disso é dizer que a história acompanha a chegada de Betty Elms (Naomi Watts) em Los Angeles, a cidade dos sonhos, a terra da oportunidade para artistas. Ela é uma atriz em ascensão e aproveita a chance que tem de vir para a Califórnia para tentar fazer sua carreira deslanchar enquanto sua tia está fora do país. Ao mesmo tempo, em outro lugar da cidade, uma moça escapa por pouco de uma tentativa de assassinato e acaba perdendo a memória no processo. O destino das duas se interlaça e se aglutina conforme a insanidade dita as regras.
Dizem que “Mulholland Dr.” é um dos filmes mais compreensíveis de David Lynch, que tem uma narrativa e uma interpretação extraível facilmente. Se isso for verdade, bem, então devo ser o rei dos imbecis por temer não entender nada daqueles considerados mais complexos. De forma alguma diria que é uma obra fácil, nem de longe. Se o diretor está envolvido, a probabilidade é de que as convenções tradicionais sejam ignoradas em prol das ramificações mais obscuras da linguagem cinematográfica. Lynch gosta de brincar com sua audiência de um jeito que às vezes parece ser mais divertido para ele que para ela, dando poucas informações e adicionando outras que só complicam ainda mais a dúvida inicial, perguntas em cima de perguntas somando para uma grande incógnita. Às vezes pode ser uma tarefa divertida tentar desvendar o mistério e juntar as pistas para tudo fazer sentido. Nem sempre é assim e nem sempre a disposição das peças ou sua quantidade é agradável.
É como se montar um quebra-cabeça tivesse uma tarefa a mais. Além de ter que descobrir onde cada peça se encaixa, se vai nas bordas ou no meio ou se já dá pra formar algum desenho quando se encaixa com outra, também deve-se notar que algumas peças que encaixavam bem antes estavam de ponta cabeça. Claro, supondo que a parte de trás fosse algo menos óbvio que uma cor de papelão destoante. Isso é “Mulholland Dr.”, basicamente. Das possibilidades, essa com certeza não é a pior, existem infinitos exemplos piores com a mesma proposta de ser misterioso, fragmentado e cheio de significados. É o que vários diretores independentes de supostos filmes-arte tentam criar com histórias de pouca substância e muitas sequências psicodélicas tentando preencher o vazio narrativo.
O diferencial de “Mulholland Dr.” é que sua história é muito boa. Ou o que se extrai dela depois que tudo faz mais ou menos sentido. Há uma impressão de que o filme é rico ao invés de pretensioso, de que as cenas mais estranhas de velhos em miniatura passando por baixo da porta significam algo embora nem sempre fique claro. Pois é. Seria ótimo se cada símbolo se manifestasse de forma que a revelação de seus significados fosse natural sem ter que apelar para exposição pobre. Não são todos que ficam claros. Nem todas as viradas se apresentam de forma que complementem o bruto da trama com idéias adjuntas, deixando-a mais complexa e criando os cliques na cabeça do espectador quando este passa a entender para que aquele personagem aleatório servia. A única coisa que salva essa obra de ser pior é sua idéia principal ficar mais ou menos clara e de fato virar ao avesso tudo que se conhecia sobre o enredo.
Isso é muito interessante. É o tipo de coisa que faz a experiência se tornar tão mais cativante porque a história começa com um mistério: eventos aleatórios envolvendo personagens desconhecidos que agem estranho e continuam a alimentar as dúvidas ao não revelar o que querem ou quem são. Outros personagens entram e não revelam nada, às vezes fazendo o espectador questionar aonde a história vai. E então uma reviravolta quando tudo começava a fazer sentido. A construção de uma trama onde não havia nenhuma, literalmente do zero, até chegar em algo que depois se torna quase o exato oposto disso não pode ser descrita como menos do que inteligente. O problema é que nessa confusão de cenas do começo passando a fazer sentido mais tarde e personagens esquisitos de função obscura, algumas coisas se perdem. Como o processo de reviravolta é relativamente rápido, algumas coisas ficam perdidas e nem tudo se encaixa. Eis que surge a segunda impressão forte de “Mulholland Dr.”: embora o bruto se explique, muito do que há em volta não recebe a mesma atenção e a história parece deixar pontas soltas do jeito ruim.
Queria ter gostado mais de “Mulholland Dr.”. Mesmo. Fazia tanto tempo que eu queria assistir e ouvia falar que foi um pouco sofrido ver que a obra final não supriu bem a expectativa como “Blue Velvet“, por exemplo. Pode ser que o estilo de David Lynch não seja exatamente minha praia, o tipo de história que gosta de levantar perguntas e não tanto de respondê-las; e quando responde nunca é de um jeito de compreensão plausível, está em símbolos ou sugestões ou, como acontece aqui, numa narrativa que se quebra e se reinventa em meros segundos. Justo quando a audiência começa a entender o grande cenário vem uma reviravolta que joga tudo para cima e dá ilumina um pouco ao mesmo tempo que ressignifica tudo. Embora não tenha sido amor a primeira vista, sinto que uma segunda ou terceira vez possam favorecer minha impressão atual.