“Seinfeld”. É praticamente impossível viver sem ter ouvido falar dela alguma vez. Nem que seja uma menção rápida em algum texto ou uma imagem aleatória. Está nos artigos sobre outras sitcoms, invariavelmente comparadas com essa, e mais freqüentemente nas listas séries mais influentes da televisão americana. São tantas menções que o seriado logo participa do imaginário do espectador antes de ele assistir, vendo uma foto dos quatro protagonistas e já sabendo de onde são e já conhecendo a reputação através de várias comparações com praticamente todas as outras sitcoms. O mais comum mesmo é ver sua presença entre as melhores séries de comédia de todos os tempos. O que há de tão diferente ou extraordinário para uma reputação tão grande?
Sua premissa é básica o bastante. Jerry Seinfeld interpreta uma versão fictícia de si mesmo, um comediante stand-up de carreira ascendente que mora num apartamento em Nova York. Seu dia-a-dia se resume a trabalhar nos clubes e passar o resto do tempo comendo alguma coisa, ficando em casa ou entrando em alguma enrascada. Mas ele nunca está sozinho, pois seus amigos dão um jeito de aparecer em qualquer lugar que esteja para acrescentar um pouco mais de emoção no dia. Normalmente é Kramer (Michael Richards), o vizinho da frente, aparecendo para roubar comida da geladeira com alguma idéia mirabolante engatilhada. George Costanza (Jason Alexander) é o melhor amigo de Jerry desde o Ensino Médio e sempre aparece com algum problema no trabalho, com seus pais ou com seus infinitos relacionamentos fracassados. Até sua ex-namorada e atual amiga Elaine Benes (Julia Louis-Dreyfus) participa com sua própria cota de problemas e reclamações sobre um namorado ou algum funcionário novo da empresa.
Uma revolução na comédia televisiva.
É importante começar com as razões por trás da fama. Quem assistir hoje pode falhar em ver por que ela é tão pioneira sendo que é muito parecida com quase todas as outras sitcoms que viu. O seriado ri das próprias piadas, as pessoas aplaudem no meio das cenas e todo o resto também é muito familiar. Novamente são quatro amigos que se vêem quase todos os dias, quatro deles. Praticamente todos os episódios se passam no apartamento de Jerry em Nova York, tal como o de Monica e Rachel ou o de Ted Mosby, ambos na mesma cidade. De vez em quando o cenário muda para o apartamento de outro protagonista ou para um lugar onde todos se encontram praticamente todos os dias, o Central Perk de “Friends” e o MacLaren’s de “How I Met Your Mother”. O pessoal de “Seinfeld” quase sempre está no Monk’s comendo alguma coisa quando alguém mais da turma aparece com alguma novidade sobre seu dia. Cadê a novidade?
Bem, talvez não haja nenhuma mesmo. A questão é que “Seinfeld” veio antes de todas as outras e estabeleceu convenções de gênero que perduram até hoje nas novas séries que saem. Nem todas. As risadas de fundo, os cenários limitados e um grupo de amigos como principais já vinham de antes. São outras influências mais notáveis. E nem me refiro às minúcias, aos pseudônimos recorrentes Art Vandelay e Regina Phelange ou a Jerry e Kramer serem vizinhos de porta, e sim ao formato geral da obra, como o conjunto da obra é reconhecível em obras posteriores que podem ter personagens e premissas completamente diferentes. Assistir a “Um Maluco no Pedaço”, “Três é Demais” ou “Minha Família é uma Bagunça”, todas sitcoms mais ou menos do mesmo período, traz uma sensação diferente e similar ao mesmo tempo. Muitas das convenções estão ali ao mesmo tempo que há um quê de série antiga denunciando um formato ultrapassado. Parte do legado está na forma como é possível ver o seriado em outros que vieram depois.
O nascimento de um novo estilo.
As razões variam desde o mais técnico até o mais sutil e difícil de identificar. Nem mesmo aqui se encontra uma revolução de um dia só. O seriado evoluiu ao longo das temporadas, transcendendo seu formato original de ser uma sitcom gravada no formato multicâmera em frente a uma audiência em estúdio. As primeiras temporadas traziam cenas de arquivo em uma qualidade notavelmente pior — VHS contra Blu Ray, para efeito de comparação — a fim de estabelecer trocas de cenário ou tentar enriquecer o aspecto cinematográfico da experiência. Pois bem, chega um momento em que elas param de aparecer. Faria sentido parar com isso porque era desconcertante a diferença de qualidade das cenas. Mesmo assim, não uma interrupção gratuita ou meramente estética. Em dado momento, os personagens são vistos caminhando pelas ruas de Nova York, num estacionamento de shopping e até em Los Angeles. Também não é uma mudança de cenário gratuita.
“Seinfeld” se tornou uma das primeiras séries modernas a desafiar os limites da forma e tentar coisas novas pertinentes ao formato de câmera única, mais comum em filmes e seriados dramáticos. Há um pouco dos dois mundos na mistura e é difícil de notar porque ver um personagem sair de seu apartamento e andar na rua não é nada extraordinário, mas fez a diferença na época. E isso é coisa pequena diante de outros destaques, vários deles relativamente ocultos. A idéia de trabalhar várias tramas em um mesmo episódio, sem se limitar a uma ou duas com recheio de piadas dos coadjuvantes preenchendo o resto dos minutos, é outro exemplo de complexidade de roteiro que até então era bastante incomum e hoje é tomado como dado. E isso nem é a melhor parte da genialidade de roteiro.
Um show sobre nada…
Sim, “Seinfeld” é descrita o tempo todo como uma série sobre nada. Da primeira até a nona e última temporada não há uma história que se estenda ao longo de temporadas, uma premissa como descobrir quem é a mãe dos filhos de Ted Mosby ou se Ross e Rachel estavam dando um tempo ou quem fica com quem no final. O mais perto que se chega disso são os episódios duplos e algumas poucas subtramas que duram menos que meia temporada. Isso não seria ruim, um retorno ao sistema velho de aventura da semana sem uma visão generalizada de enredo? Não. Primeiramente, esse formato é antigo, não necessariamente ruim. Segundamente, a sofisticação dos roteiros de conseguir em um episódio englobar tantas tramas diferentes faz muito para tornar a experiência mais agradável, além de algumas constantes narrativas evitarem a idéia de que cada capítulo é completamente isolado do outro. A busca de emprego de um personagem, a permanência de outro no que já ocupa e outras situações recorrentes ajudam muito nisso.
…e sobre tudo também.
A verdade é que para um seriado sobre nada, há muita coisa em jogo. As pessoas costumam dizer que o cotidiano é vazio e banal, preenchendo os vazios entre outros momentos grandiosos com nada de relevante. A verdade é que a junção de todos esses nadas muitas vezes é mais do que os ditos tudos. Quase todo dia acontece alguma coisa peculiar no meio da rotina repetitiva. Por exemplo, uma pessoa trabalha seis dias por semana e não consegue fazer muita coisa no tempo que sobra depois do trabalho, então tenta colocar na cabeça todas as coisas que deseja fazer durante a única folga da semana. Ela ativa a soneca vezes demais, a internet cai e o técnico pode chegar a qualquer momento entre meio dia e onze da noite, restaria comer alguma se tivesse comida na geladeira, o que leva a gastar mais tempo no mercado e aí já acabou a folga praticamente. Por que isso não poderia ser um episódio de “Seinfeld”?
Mas se for para dizer que há um padrão seguido nos episódios, seria o de boa parte das aventuras ser centrada nas aventuras amorosas dos quatro personagens. Vários dos coadjuvantes marcantes e dos episódios mais engraçados envolvem Jerry ou outra pessoa saindo num encontro com alguém e dando terrivelmente. Muitas vezes é uma garota terrivelmente atraente que é deixada de lado porque se perde a mulher, mas não a piada. E isso é relativamente simples e fantástico ao mesmo tempo porque poucas pessoas têm a coragem ou falta de noção de irritar alguém a ponto de ela ir embora por causa de alguma bobeira e uma situação engraçada. Nada como perder um namorinho porque a pessoa decide comprar balinhas antes de ir correndo pro hospital.
São essas pequenas coisas que alimentam todas as histórias. E faz todo o sentido com o próprio Jerry Seinfeld sendo um comediante stand up que fala sobre cotidiano, o clássico “Você já notou que…” colocado em prática em outro formato. Cada vez é uma nova pequenice rendendo vinte e tantos minutos de entretenimento de qualidade. Essa é a comédia inteligente, que usa os ingredientes mais inusitados para criar situações apreciáveis por si, no mínimo divertidas e freqüentemente hilárias a ponto de rir junto com as gravações enquanto admite para si como as piadas são espertas de fato. Todas os feitos que tornaram “Seinfeld” tão popular e influente são mais do que meras curiosidades para os famintos pelas histórias de bastidores, elas só são relevantes mesmo porque o seriado é extremamente competente no que faz. Ninguém se importaria com quantas câmeras são usadas na direção ou com as similaridades se o saldo fosse negativo. As séries que vieram depois sequer emprestariam idéias se elas fossem ruins e nunca se teria chegado em nove temporadas.
Copiado, nunca igualado em distinção.
Muito do que se vê aqui é usado posteriormente, como dito e reforçado. Então talvez se pudesse argumentar que não haveria nada de novo para ver aqui, já que quase tudo foi reutilizado e reciclado. Pois bem, os sucessores felizmente mostraram originalidade suficiente para não serem cópias baratas e “Seinfeld” realiza o paradoxo de ser o pai de vários filhos, todos rebeldes aparentemente. Por mais que se mencione o café e o grupo de amigos, todo o resto parece fazer questão de ir na contramão do óbvio sempre que possível, quase numa síndrome de ser do contra porque sim. Se é esperado um romance dentro do grupo, não vai acontecer. Se parece que a história se encaminha para desenvolver seus personagens em direção ao curso natural das coisas, ela muda de direção na hora. Basta ver como a morte de uma coadjuvante relativamente importante é tratada, com certeza diferente da tendência recente de matar personagens queridos para efeito de choque. O polêmico final, então, é a epítome dessa filosofia. Se há uma coisa difícil de imitar é a qualidade de ser distinto da maioria.
Sendo justo, “Seinfeld” não conquista de primeira. Demorei pelo menos até o final da segunda temporada para me familiarizar com os personagens e me ajustar à dinâmica dos episódios, do formato e do estilo. Normal para a maioria dos seriados complexos, com muitos personagens e plano de fundo rico para absorver, não tanto para um seriado de comédia. O lado bom é que as duas primeiras temporadas são curtas, com a primeira tendo apenas 5 episódios e a segunda com 12, então antes de perceber já chegou a terceira temporada e o encanto já está forte. Já é tarde demais para abandonar o seriado pela metade e também não demora para as temporadas passarem voando e tudo enfim terminar, deixando apenas uma memória forte de nostalgia e uma demonstração melhor que qualquer outra do porquê essa é uma das melhores séries de comédia de todos os tempos.